Perante os acontecimentos de Bruxelas – que se tivessem acontecido na Nigéria em consequência de um ataque do Boko Haram não tinham ocupado mais tempo de antena nas televisões do que o futebol –, ouvi várias vezes uma pergunta, formulada de forma explícita ou implícita: que podemos fazer? E tive a perfeita noção de que os dirigentes europeus não sabem como responder-lhe, a não ser sacrificando os cidadãos, diminuindo-lhes as liberdades, à maneira americana, ou indo-lhes aos bolsos, aumentando a despesa com os serviços de informação e segurança. Ou seja, dando um analgésico a quem tem uma infecção grave.
Numa perspectiva mais séria – ia quase a dizer científica –, talvez fosse bom perceber a causa da doença antes de medicar. Ou seja, devemos perguntar: qual é a causa disto tudo? Tenho vindo a ouvir, desde os ataques a Nova Iorque, algumas respostas a esta pergunta. E penso que há dois tipos de resposta.
A primeira teoriza que tudo se deve à vontade de poder e de dinheiro (com ligações ao petróleo e etc.), com uma máscara de motivação religiosa. Esta teoria, chamemos-lhe economicista, insinua que existem múltiplos exemplos do passado que a corroboram, a começar pelas nossas Cruzadas de há mil anos: o verdadeiro interesse era a conquista dos territórios e das riquezas, embora não existisse indústria petrolífera, e ninguém se ralava com a religião.
A segunda teoriza que o espírito de missão e de conversão dos infiéis é que é o verdadeiro motivo. Ou, pelo menos, a defesa da fé e dos seus princípios e doutrinas. Esta teoria, chamemos-lhe culturalista, também usa múltiplos exemplos do passado, a começar pela Inquisição, que começou a perseguir os infiéis e os hereges há quase tantos anos e não parece que tenha tido qualquer interesse em conquistar territórios aos mouros.
Quando ontem vi na televisão os dois bombistas suicidas a empurrar os carrinhos com os sacos, a caminho da morte certa, perguntei-me: alguém faria isto com interesses económicos? Alguma vez dois sujeitos (sabe-se agora que eram irmãos) de vinte e tal anos decidem acabar com a vida para ganhar poder ou dinheiro? Onde se já viu isto? E pensei: no Japão, com os pilotos suicidas. Com que objectivo? Financeiro? De poder? Não! O objectivo era defender a sua cultura e o seu imperador, considerado um deus. Assim, por mais que se tente encontrar uma explicação económica para tudo (o êxodo rural foi devido a questões económicas, a emigração é devida a questões económicas, a quebra da fecundidade é devida a questões económicas – a imaginação explicativa não é, de facto, muita), penso que este terrorismo, por mais que os chefes tenham como motivação o poder e não a religião, não pode existir sem o espírito de «anulação da heresia». Por isso, estou mais de acordo com a tese culturalista.
Qual a solução então?
Já aqui a apresentei numa crónica que escrevi no Natal. É absolutamente necessário que os líderes mundiais se associem aos líderes religiosos para promover uma separação absoluta entre a religião e a vida pública. Ou seja, para confinar a questão da fé a uma dimensão estritamente privada, do foro pessoal. Não perceptível através do uso de adereços exteriores, como roupas, chapéus, marcas no corpo e afins. Nem transmissível às crianças; estas deviam conhecer, na escola, a história e os conteúdos das religiões e tomar as suas decisões de crença, ou não crença, em adultos, escolhendo, eventualmente, a religião a seguir. Mas o domínio da fé e da prática dessa fé deveria ser estritamente privado. Algo que servisse a plenitude espiritual individual e não quaisquer interesses sociais, ou económicos, colectivos. Só assim se poderia evitar, em minha opinião, as filosofias de «missão», de «evangelização» e de «catequização». Assim como se evitariam as agressividades em relação a indivíduos de outras religiões diferentes, uma vez que, sendo a fé um assunto totalmente privado, não se saberia qual a religião de cada um. Ou sabendo, ninguém teria interesse em convencer o outro. Como eu não tenho interesse em convencer os meus amigos a amar os meus deuses Vergílio Ferreira, Keith Jarrett ou Rembrandt.
Era isto que a Europa devia promover, em união com os países poderosos deste mundo e os líderes religiosos mentalmente sãos. Devagarinho. Com persuasão e não proibição. E devia ser – neste caso muito rapidamente – intransigente em relação ao absoluto respeito da laicidade dos Estados e dos seus dirigentes.
Mas não é isso que acontece. Basta abrir a televisão. Porquê? Porque a religião é indissociável da cultura identitária e, logo, eleitoralmente rentável. É, por isso, um assunto tabu. Não se pode questionar. Portanto, não se pode fazer nada.
Por tudo isto, termino com uma máxima roubada: o problema das sociedades modernas não é o futuro; é o passado.