Na caminhada desta manhã, no norte da ilha de São Miguel, cruzei-me com uma mulher idosa com um xaile negro à cabeça, sentada sobre a soleira da porta. Vinha, nas minhas passadas, a usufruir do odor intenso das algas que, por esta altura do ano, flutuam soltas junto aos calhaus da ilha, serpenteando, verdes e castanhas, o redondo azul das belas enseadas; vinha a reparar nos homens da freguesia, que saltavam de pés descalços de rocha em rocha, no mourejar, que é diário, da apanha da lapa e de um ou outro búzio. Maré vazia, portanto. Mergulhados todos, eu, a mulher, os homens, em fragrâncias de mar salgado, espumas soltas pela brisa que arrepiava levemente as águas mansas. Aproximava-me a passos largos da mulher e fantasiava sobre aquele vulto sombrio, agachado na porta de casa. Talvez um ser desligado do mundo. Talvez uma mulher sequestrada por lembranças. Talvez alguém a matutar o momento. Estava só e, à sua frente, para lá da rocha, para onde se guindam os olhos à toa para longe, só água e ar. Azul de mar e céu infindos. Isto, depois de se galgar por cima de uma nesga de verde, de ervas resistentes, e de outra nesga de preto, faixa de basalto duro. Pudera não, é pedra torriscada no centro da terra. Havia uma certa reverberação de luz e calor, sol em queda livre como chuva direta à superfície. Então, porquê o xaile negro e pesado a envolvê-la? Passei. Foi um instante. Dei-lhe um bom dia rápido e vi-a tapar o nariz e a boca com as mãos. Detonaram palavras toldadas: “Quem tem tino não apanha!” Como?! Senti o cérebro a recolher à sua cavidade, o crânio, para decifrar o cumprimento da velha. Linguagem popular? Referia-se à covid?Certamente! – “Olhe, não sendo a pandemia, dava-lhe um beijo!”, atirei, sempre a andar. E não me arrependi do carinho atrevido que lhe dirigi. Compreendera que as suas palavras significavam cuidados com a sua saúde e o desejo que eu fizesse o mesmo. Ligeiramente afastado, olhei de relance para trás e reparei que a doçura me acompanhava com um olhar manifestamente inquieto, igual ao de uma avó preocupada com a fragilidade de um neto.
Mulher de xaile negro
Aproximava-me a passos largos da mulher e fantasiava sobre aquele vulto sombrio, agachado na porta de casa. Talvez um ser desligado do mundo. Talvez uma mulher sequestrada por lembranças