“Francisco, o que tens feito aí em casa?”
“Ando a correr à roda do sofá, avô. Estou entediado! Que seca!”
“Entediado? Onde foste aprender esta palavra bonita?”
“Avô, pelo amor de Deus, nem sabes as palavras que eu sei!”
Francisco tem 8 anos, é um dos melhores alunos da turma e um desportista nato. Pratica futebol, hóquei, surfa e acena-nos da crista da onda. Trepa a tudo quanto for mais alto do que ele. A Lua é o seu limite.
Enquanto a Terra se regenera através do Covit 19 – um estudo da NASA dá conta que o planeta está mais verde que há vinte anos atrás – o vírus obriga os pais a trabalhar em casa. Um refugia-se no primeiro andar para poder ter silêncio que lhe permita comunicar com o exterior; o outro trabalha na sala e é paciente, o barulho dos filhos não o incomoda em demasia.
O que se passa neste lar, entre as praias do Pópulo e de São Roque, na ilha de S. Miguel, acontece na maioria das casas açorianas. Pais e filhos, enjaulados porque a ameaça tomou conta do espaço exterior, aguentam o distanciamento social entre quatro paredes.
Os solitários, como eu, longe deles, dos filhos e dos netos, no meu caso, até da minha própria mulher, que está noutra ilha em isolamento com a mãe idosa, ancoram-se nas televisões, nos ipads, nos iphones, na leitura, na escrita, e cozinham para si próprios, fotografando os cozinhados para mostrar as mistelas à família, que, do outro lado do ecrã, se ri divertida. Há dias experimentei os bolos lêvedos. Foi uma receita tirada a ferros a uma sobrinha. Pareciam hambúrgueres esmifrados, capazes de partir os dentes a quem se atrevesse comê-los. Ossos de quem se aventura alto demais.
“Avô, posso dar-te um conselho? Não vejas muita televisão e pesquisa o menos possível sobre o vírus para não ficares deprimido.”
“Deprimido? Outra palavra cara, Francisco? Que eloquência é essa?”
“Avô, apanhaste-me agora nas curvas. Não sei o que quer dizer eloquência. Diz-me.”
“Quer dizer que usas palavras certas e bonitas.”
O Francisco tem razão, mas a ponta do dedo não resiste ao mundo e clico em tudo quanto é link a fim de saber por onde grassa a doença e que estragos faz.
Costa considera repugnante a posição do ministro das finanças holandês em não aceitar a emissão de eurobonds (títulos de dívida conjunta ) como forma de contrariar os efeitos económicos e sociais da pandemia. Foi comedido. Eu adjetivaria com mais veemência. Os países mais afetados pela pandemia, Itália e Espanha, juntam-se contra a União. Portugal está do lado deles. Os primeiros-ministros espanhol e italiano querem mitigar os múltiplos prejuízos com “instrumentos financeiros inovadores”. E, em tom de ultimato, dão dez dias para que a União reconsidere o parágrafo 14 do rascunho das conclusões, que não assinaram, senão … Senão, o quê? Mais dois exits? E que outros se lhes seguirão?
Uma coisa é certa: a solidariedade europeia não passa de uma quimera. Como pudemos abandonar a Itália à sua sorte? E também a Espanha. E quem virá a seguir?
Uma União que foi criada com o objetivo de pôr termo a guerras fratricidas entre países vizinhos, que culminaram na Segunda Guerra Mundial, dessodilariza-se quando as sirenes tocam a reunir? Um por todos e todos por um? Onde? Quando? Como?
O Messenger voltou a apitar. O Francisco voltou a ligar.
“Avô, sabes quantas voltas já dei a correr ao sofá? Trezentas e sessenta e cinco, os dias todos do ano.”
“Muito bem! És um valente!”
Oxalá esta Europa tenha a persistência do Francisco, apenas um menino. Oxalá a Comunidade Europeia, tal como ele, consiga cumprir as trezentas e sessenta e cinco voltas do ano em curso sem que a meio caminho se desintegre e nos remeta a todos, com ou sem vírus, para um desastroso isolamento compulsivo.