A política do filho único na China está na base de uma grande falta de mulheres no “mercado do casamento”. Desde os anos 80, quando a China era governada por Deng Xiaoping, que as autoridades do mais populoso país do mundo criaram regras para controlar os nascimentos. Essa política traduziu-se na criação de várias barreiras a mais do que uma criança por cada casal.
Um facto conhecido dos demógrafos, uma quase “lei natural”, é que nascem mais rapazes do que raparigas. A proporção a nível mundial (que pode não ser espelhada a nível local ou regional) é de 105 nados-vivos do sexo masculino por cada 100 do sexo feminino. No caso da China, esta sobremasculinidade dos nascimentos é muito mais pronunciada – cerca de 116 rapazes por cada 100 raparigas. Tal deve-se, sobretudo, a uma valorização cultural e social dos homens em detrimento das raparigas, o que leva ao aborto seletivo de fetos do sexo feminino. Segundo a revista The Economist, esta balança desequilibrada traduz-se na “falta” de 66 milhões de mulheres na população chinesa (que teriam nascido caso não houvesse a prática de abortos seletivos), ou seja, 10% da população feminina do país.
O desequilíbrio é amplificado ainda mais por outros comportamentos da população chinesa. A vida familiar na China é quase totalmente abrigada sob o guarda-chuva do casamento. Os homens têm tendência para casar com mulheres mais novas. As mulheres com mais recursos económicos têm maior propensão a manterem-se solteiras. E os homens passam mais tempo à espera na fila para o casamento do que as mulheres. Em 2050, segundo Christophe Guilmoto, do Institute of Development Research em Paris, o efeito conjugado da seleção do sexo dos nasciturnos e destes comportamentos pode traduzir-se na existência de 180 homens com vontade de casar por cada 100 mulheres com desejo de o fazer!
A falta de mulheres no mercado do casamento não é homogéneo para todos os que se pretendem casar. Na China, há uma tendência para as mulheres casarem com homens numa posição económica e social superior. Por isso, para os homens com fracos recursos e educação e para as mulheres no topo do escadote social, o casamento é ainda mais difícil.
Algumas das restrições da política do filho único têm sido levantadas mas o seu efeito no reequilíbrio dos sexos da população chinesa só se fará sentir muito mais tarde. Nas localidades junto à fronteira com o Vietname, parte das cônjuges do sexo feminino são vietnamitas. O tráfico de mulheres “casadoiras” está a aumentar. A violência grave está a subir na sociedade chinesa, fenómeno atribuível a um número elevado de jovens solteiros. Os jornais chineses imprimem artigos a aconselhar o casamento com estrangeiras, sugerindo mesmo o recrutamento, por exemplo, na Ucrânia. A escassez de mulheres no mercado do casamento, contudo, manter-se-á durante muitos anos, enquanto o efeito geracional dos abortos seletivos e dos comportamentos dos chineses se fizerem sentir.
Segundo os investigadores consultados pela revista de língua inglesa, grande parte da população mundial começa, assim, uma experiência inédita em termos demográficos. Nem durante o período da exploração do Oeste norte-americano se havia assistido a um tal desequilíbrio na distribuição da população por sexos. E mesmo que tivesse existido, nunca como hoje abrangeu comunidades tão vastas. Também na Índia, onde não existe a política do filho único mas onde o casamento de uma mulher exige o pagamento de um dote, a prover pela família da nubente, há seleção dos nascimentos com base no sexo. No país de Ghandi, a balança pende para 111 homens por cada 100 mulheres. Ora, a população conjugada destes dois gigantes demográficos representa um terço da população mundial, tornando deste modo inédita e sem precedentes a experiência da escassez de mulheres.
No mundo, as razões culturais ou religiosas são uma forma muito cool de dizer tacanhez intelectual e cegueira radical. São elas que continuam a manter numa situação de inferioridade, não só no Oriente mas também entre nós (basta ver que a igreja católica continua a vedar às mulheres a celebração do culto e que este “papa do povo” considera que as mulheres devem ficar em casa a procriar), metade da população mundial. Enquanto as mulheres forem assim vistas e tratadas por um terço do mundo, a humanidade esbracejará como os girinos se revolvem na lama: nunca se porá de pé.