É quase noite, Laura chega a casa, vinda da fábrica. Há duas semanas que ela acumula dois turnos. Favor que faz a uma colega, amanhã será ela quem carece de ajuda. Regressa exausta do que fez durante o dia, mais exausta ainda por saber que os dias seguintes se repetirão sem história, sem alívio, sem surpresa.
Às vezes, o que mais nos cansa é o que nunca vai acontecer.
Vai direta ao quarto da filha, dá-lhe de comer e deita-a a dormir. A menina pede uma canção e Laura já não tem voz. Ou se a tem, já não sabe onde a encontrar. Há muito que a filha aprendeu a adormecer nesse embalo feito só de silêncio. No pátio, olha pela primeira vez o céu. Tarde demais, já sobram apenas cinzas vermelhas desse sol que ela quase nunca consegue enxergar. Apressadamente, Laura recolhe a roupa do estendal. Deixa-se envolver pelos lençóis como se aquele fosse o abraço com que sonhara o dia inteiro.
O homem espera-a na cozinha onde passou a tarde. A esposa entra, sem o saudar, sem sequer lhe dedicar um esquivo olhar. Com um braço segura os embrulhos que traz consigo do pátio e, com o outro, vai arrumando as garrafas vazias de cerveja que o marido consumiu nas últimas horas. O homem, imóvel, contempla a azáfama da esposa. Entrega-lhe o cinzeiro para que ela o despeje e lho devolva já livre de cinzas. Sendo fumador, ele não suporta o cheiro a tabaco.
Só depois o homem estica as pernas e anuncia com entusiasmo:
– Ainda bem que chegaste. Quero mostrar-te uma coisa.
O fósforo, nas mãos trémulas, acende a lamparina. Arregaçadas as mangas, o homem franze os olhos para evitar o fumo e proclama:
– Olha para isto, Laura. Não vais acreditar.
Coloca as mãos bem dentro das chamas, como quem paga uma promessa. Pela cozinha se espalha o inconfundível cheiro a pele queimada. Impávida, a mulher vai lavando a loiça, sem nunca desviar o rosto do lavatório onde afunda as mãos como se as quisesse fazer desaparecer.
– Olha para aqui – ordena o marido. – Vai-te cair o queixo, Laura.
– Já me fizeste cair o queixo há muito tempo.
– Estás a ver, mulher? – pergunta, as mãos envoltas pelo fogo. – Não me dói, não sinto nada.
O entusiasmo continua a ser só dele, enquanto se escuta o ruído dos pratos e dos copos sendo arrumados no lavatório.
– Impressionante! – comenta ele, com veemência.
– Isto já deve ser queimadura de terceiro grau.
– Foste pagar a conta da luz? – pergunta a mulher.
– Olha para aqui, Laura. Estive a tarde inteira à tua espera.
Laura remexe as entranhas numa lata. Bate com a lata na mesa para dar relevo à sua inquietação.
– E onde está o dinheiro que deixei para pagares a luz?
– Não sentes o cheiro a carne queimada?
A mulher enche um balde para lavar o chão e pede ao homem que tenha cuidado. O petróleo derramado causa um fedor pior que o da carne queimada.
– Vou aumentar as labaredas, já vais ver. Caraças, pá, isto é uma loucura, Laura. Ainda faço esta merda toda arder.
Os reflexos da chama acendem luzes no pavimento que a mulher vai esfregando. Os joelhos de Laura apagam essas repentinas estrelas. Aos poucos, a mulher torna-se mais escura, mais funda que o próprio chão.
– Vê, Laurinha, agora são os braços inteiros, olha-me para isto, mulher. É inacreditável!
– Responde-me a uma pergunta: foste procurar emprego?
– Olha os pelos do braço todos chamuscados. Não sentes o cheiro?
A raiva com que torce o pano é mais do que a tarefa pede. Esse trapo que espreme nas suas mãos é a sua própria vida. A água tomba no balde até o pano sucumbir sufocado.
O marido abre a porta das traseiras e proclama:
– Pois vou lá fora, acendo o fogareiro, atiço o carvão e deito-me em cima das labaredas. E vais ver que, da minha boca, não sai um queixume.
O homem sai para o quintal enquanto, na cozinha, Laura arruma as garrafas de cerveja vazias e lamenta:
– Isto nunca mais vai parar…
Quando, lá fora, as labaredas sobem à altura da janela, a mulher murmura:
– Amanhã, quem vai varrer as cinzas sou eu.
(Crónica publicada na VISÃO 1383 de 5 de setembro)