Neste Jogos Olímpicos, a saúde mental conseguiu bater Snoop Dogg e estar mesmo em todo o lado: a competir, no media centre, nas bancadas. Medalha de ouro ex aequo à vulnerabilidade, à destigmatização e à importância da psicoterapia. Os preconceitos com as doenças mentais foram combatidos em cada acrobacia, tiro, mergulho, sprint. E a equipa vencedora fomos todos nós, quase 2 mil milhões e quem está nos arredores, que lidamos com a doença mental.
Eles parecem super-humanos, mas não são imunes à pressão, à competição, aos vazios pós-olímpicos, à derrota, ao imperativo da vitória contínua, ao perfecionismo, à saída do desporto. Nem ao estigma: para nós são heroicos, podem lá ser doentes mentais? Mas são: 50% dos atletas de elite têm sintomas ou doenças mentais, com prevalência da depressão, ansiedade e distúrbios alimentares – dados do Comité Olímpico Internacional em 2019. Os serviços psicológicos do Comité Olímpico dos EUA sinalizaram metade dos seus atletas, desde os Jogos do Rio 2016. Entre nós e este ano, o Observatório de Saúde Mental colocou a fasquia nos 40%.
Quando Simone Biles decidiu retirar-se dos Jogos de Tóquio para cuidar da sua saúde mental, ecoou pelo mundo o espanto estigmatizado. A super ginasta, fisicamente capaz do impensável, tinha uma doença mental?! Era um mundo muito desatento, este ainda pandémico de 2021: começávamos a perceber que as doenças mentais também são pandemia, mas tínhamos feito ouvidos mocos a Michael Phelps, o nadador das 23 medalhas olímpicas que, em 2015, começou a falar publicamente da sua depressão e ansiedade; ou a Ian Thorpe, o campeão australiano que, em 2016, fez o mesmo. Ambos deram o alerta, numa altura em que a integração dos psicólogos do desporto nas equipas (ou nas nossas vidas) era miragem. Em 2020, Noah Lyles, hoje o homem mais rápido do mundo, tweetava o seu diagnóstico de depressão e assumia que os antidepressivos o estavam a ajudar. Seguiu-se Naomi Osaka. Mas há um aS e um dS – antes e depois de Simone. Em julho de 2023, o COI lançou o primeiro “Plano de Ação para a Saúde Mental”, com várias medidas a serem implementas nos Olímpicos de Paris graças ao “efeito Biles” – e o tema destes Jogos foi escrito por ela, no Instagram, mal se tornou campeã olímpica: “Mental health matters”.
Até aqui, o estigma era recordista absoluto em qualquer modalidade. Agora, os atletas equiparam-se de autocuidado, literacia e muita terapia, e reclamaram a dianteira para a sua saúde mental. Estes são os preconceitos atirados ao tapete, nos Jogos Olímpicos de Paris.
Eles têm tudo, não podem ter doenças mentais. Nesta sociedade instantânea, a aparência dita sentença e perceciona-se o sucesso, medalhas e fama como antónimos de doença mental. A lista de atletas que, com coragem olímpica, competiram vindos de problemas de saúde mental assumidos ou a lidar com doenças mentais ativas, põe este preconceito fora de jogo. Além de Biles e Lyles, Caleb Dressel (natação, EUA), Tom Daley (saltos para a água, GB), Gabriel Medina (surf, Brasil), Sha’Carri Richardson (atletismo, EUA), Adam Peaty (natação, GB), Sunny Choi (breaking, EUA), René Holten Poulsen (canoagem, Dinamarca), Ysaora Thibus (esgrima, França), Kimberly Woods (canoagem, GB), Bárbara Timo (judo, Portugal), Irina Rodrigues (lançamento do peso, Portugal), e muitos outros falaram publicamente da sua saúde mental. A verdade: As doenças mentais são multifatoriais e extremamente democráticas, podem acometer qualquer pessoa.
A depressão é coisa de preguiçosos e fracos. Se há pecado mortal que estes atletas não cometem é a preguiça. O treino rigoroso, os sacrifícios e anos de preparação são de disciplina constante, de extraordinária exigência física e mental – é impossível dizê-los fracos. Mais: num mundo estigma-recordista, assumir vulnerabilidade e doença mental no palco olímpico-mediático, revela muita força! A verdade: A depressão é uma doença complexa, de causas múltiplas e enorme sofrimento. Atribuir uma doença a capricho, preguiça ou fraqueza isso si, é coisa de fracos.
Depois de uma doença mental, perde-se competência na performance profissional. Simone Biles voltou à sua profissão em 2023: foi campeã mundial individual, por equipas, ouro no solo e trave e prata nos saltos; é campeã olímpica, com 3 ouros e 1 bronze. A canoísta britânica Kimberly Woods teve de ultrapassar uma depressão, comportamentos autolesivos e ideação suicida para chegar a Paris – ganhou 2 medalhas de bronze. Para Tom Daley, que lidou com depressão e distúrbios alimentares, estes foram os quintos Jogos e ganhou a quinta medalha. É preciso continuar? A verdade: Regressa-se diferente de uma doença mental, é uma experiência avassaladora. Mas plenamente válido e competente, com mais autoconhecimento. É crucial fazer o phase out do tratamento e o phase in de regresso ao trabalho de forma estruturada e adaptada.
As doenças mentais não têm cura. Pois não, têm remissão. Conseguem encontrar argumentos para validar tamanho preconceito, face à alegria, sucesso e resultados destes atletas? A verdade: O tratamento adequado, que atue sobre as causas, stressores e sintomas, remite a doença e dá-nos ferramentas para vigilância e manutenção da saúde mental.
A terapia é para malucos. A judoca Patrícia Sampaio faz psicoterapia para gerir a sua saúde emocional e os desafios competitivos. Rebeca Andrade, ginasta brasileira, faz terapia desde os 13 anos. Simone Biles teve um teleconsulta madrugadora com a terapeuta no dia em que se tornou campeã. Noah Lyles tem 3 terapeutas diferentes. A verdade: A terapia salva. A medicação é um precioso auxílio, mas só com psicoterapia se atua sobre as causas e previne reincidência.
O estigma é inquebrável. A lançadora do disco brasileira Izabella Rodrigues teve um intenso ataque de ansiedade, com vómitos e insónia, na véspera das classificatórias. Ficou em 17.º, não chegou à final, e deu o exemplo, explicando aos media porquê. Noah Lyles, a seguir ao ouro nos 100m publicou no X: “Tenho asma, dislexia, défice de atenção, ansiedade e depressão. O que têm não define o que podem vir a ser. Porque não tu?”
Eu, ex-deprimida e ansiosa ocasional, que não sei fazer a roda e levo 10 minutos para correr 100m, acrescento que se estes atletas dão músculo ao combate ao estigma, podemos todos ser meio-fundistas pela saúde mental. Knockout.
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