Neste Dia Mundial da Saúde Mental, é 2023 vezes patente que um dia só não basta: a situação é de tal sorte – ou azar – que é essencial priorizá-la 365 dias por ano. No mundo pós-pandémico a saúde mental ganhou as bocas do mundo, espaço mediático, e chegou ao sítio onde passamos mais tempo acordados: o trabalho. Mas as questões são as de sempre – só que antes ninguém, pública e incomodamente, as colocava: o estigma, diminuiu? Não. Estamos a criar melhores autogestores emocionais? Não. Os decisores têm políticas de saúde mental promotoras de igualdade de acesso a cuidados de saúde mental? De todo. As empresas interpretam-se como parcela do problema, parte da solução ou fazedoras de “mentalwashing”? “Nim”: as organizações responsáveis querem saúde mental para os seus colaboradores, ainda que nem sempre tenham o raio-x afinado para avaliar a dimensão in-house do problema, estando a mais das vezes a reagir e pouco preparadas para os danos da suspeita do “mentalwashing”.
Mas é o trabalho que nos deixa a mente doente? No ano da democratização do burnout, serão a vida, a neuroquímica e a nossa cabeça assim tão compartimentalizadas, a ponto de existirem verdadeiras síndromes e doenças mentais “pessoais” e outras “ocupacionais”? Ou será que a saúde mental dá (muito) trabalho – no trabalho, em casa e em todo o lado, 365 dias por ano?
Compartimento 1 – a origem do problema. 50% das doenças mentais instalam-se até aos 14 anos, e 75% até aos 24 anos. São percentuais panorâmicos da Organização Mundial da Saúde, que nos permitem uma primeiríssima e magna conclusão: só 25% das doenças mentais acontecem na idade adulta. A raiz deste mal é, portanto, muito anterior à entrada no mercado laboral, sendo uma parcela muito substantiva da (falta de) saúde mental ocupacional um problema trazido para o trabalho, e não gerado no trabalho. E logo aqui começa a desconstrução da peregrina ideia da compartimentalização das coisas.
Esta recolocação cronológica do problema não retira importância à criação de ambientes de trabalho saudáveis e aos programas de saúde mental e bem-estar que ali aconteçam – porque é ao trabalho que dedicamos a maior parte do nosso tempo, porque há um reequilíbrio dessa dinâmica em curso (e uma geração Z que já não quer viver para trabalhar) e porque, convenhamos, chefes, colegas e contexto têm um impacto substancial nos nossos dias e sanidade. Mas obriga a repensar o investimento: as organizações preferem remediar ou prevenir – mesmo que essa prevenção seja madrugadora e fora de portas? É muito simples impactar positivamente nos 25% cujas doenças mentais se instalam até aos 24 anos: investindo na saúde mental do talento universitário, onde as empresas recrutam – previne a geração de adultos doentes e a “importação” da doença mental para a organização, e pode até garantir melhor recrutamento, já que zoomers e alphas, (ultra)valorizam a política de saúde mental no momento de escolher o empregador.
Em Portugal, a saúde mental ocupacional custa 5,3 mil milhões € à produtividade das empresas. Mas já nos idos de 2019, só a depressão e a ansiedade custavam ao mundo 1 bilião €.
Compartimento 2 – será tudo burnout? Esta síndrome cinquentona ultrapassou o etarismo e tornou-se tendência. Num repente, a pandemia viral faz sair a saúde mental do armário, altera a forma de trabalhar e a perceção geracional do trabalho, e o burnout escapa-se ao estigma. Os diagnósticos dispararam e a aceitação social também: em janeiro deste ano sabe-se que 2,5 mil milhões de trabalhadores sofreram um burnout no atual emprego – cerca de 75% da força de trabalho mundial. Portugal, segundo a OMS, é o país com maior risco de burnout ocupacional, 50% dos trabalhadores já entraram em combustão mental. Mas face à grandeza da estatística das doenças mentais, e à curta-metragem desta síndrome, não haverá atualmente um sobre diagnóstico (mesmo que informal) deste problema?
O burnout é tendência porque, na escala dos problemas de saúde mental, é de menor impacto. Combina causas e sintomas físicos e psicológicos, e a associação ao excesso de trabalho “despenaliza-o” socialmente e torna a sua linha causal fácil de compreender – quando a depressão ou mesmo a ansiedade são bichos estranhos e invisíveis. E não seria tudo mais fácil se o compartimento pessoal não contagiasse o laboral? O sobrediagnóstico do burnout é de comprovação complexa, mas a comparação matemática ajuda e o estigma explica. Ao aceitarmos o nexo causal do burnout como sendo de “um empenhado trabalhador”, conseguimos despi-lo do preconceito e discriminação que tapa os doentes mentais até ao pescoço.
Compartimento 3 – prevenir, reagir, reintegrar. Na saúde mental, a intervenção precoce é sempre bom investimento. A doença mental, uma vez instalada, torna-se resistente, persistente e muito mais difícil de ultrapassar. No entanto, estamos todos a reagir ao mal instalado. A lógica de sanidade e bem-estar já não é wishful thinking, mas ainda está na wishlist. Ao contrário da reintegração, que é pura miragem.
Acha-se a doença mental incurável. A depressão não tem cura, e se tiver nunca mais se volta a ser a mesma pessoa – preconceito que nega a maravilhosa plasticidade do nosso cérebro. Por maior que seja o enfraquecimento sináptico ou a lentidão da comunicação entre as células nervosas, quando a doença remite o cérebro reabilita-se. Não voltamos a ser os mesmos, mas outros igualmente funcionais e capazes de superação – como a campeã mundial da reintegração ocupacional, Simone Biles que parou dois anos e voltou à sua profissão para se tornar “apenas” campeã do mundo e dona de 37 medalhas mundiais e olímpicas. A reintegração acontece todos os dias, sem lhe darmos nome ou estruturação.
Escrevo sempre sobre saúde mental na primeira pessoa, porque sei o impacto que a identificação gera nas pessoas. Mas sei do que falo, e sei na pele que teorizar compartimentos não tem validade prática – e pouca científica. Se não estivesse cronicamente deprimida e ataques de ansiedade sem fim, não teria tido nenhum dos meus dois burnouts. Se na universidade se fizesse prevenção, provavelmente não teria tido uma depressão tão crónica. E se a reintegração fosse realidade, o estigma estaria magro, a produtividade nacional gorda e eu não era colecionadora de “ses”.
Se acha que devemos todos falar sobre saúde mental e promover positivamente este debate, pode usar este email: a.normal.saudemental@gmail.com
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