49,5% da população mundial são [3,994 mil milhões de] mulheres. 52,4% da população nacional são [5,433 milhões de] portuguesas. As mulheres são a maioria discriminada como minoria, o género que perde em todos os gaps: em 2022, o gender gap medido pelo Fórum Económico Mundial foi de 31,9%, o gender pay gap médio de 20% custou às mulheres 160 biliões, e o leadership gap é assombroso – só 50 das 500 maiores empresas mundiais têm CEOs mulheres. Se existisse algo remotamente semelhante a igualdade de oportunidades e direitos, a economia global cresceria mais 7% ao ano – são apenas 7 biliões de euros. Esta rasante panorâmica chega-lhe para achar que a desigualdade é insana? É que o gap seguinte, inevitável, é de saúde mental: a prevalência da depressão e da ansiedade é duas vezes maior nas mulheres, o risco de burnout feminino é 32% superior ao masculino. E ao contrário do que a história fabricou, a explicação não está apenas na neurobiologia: a doença mental também se produz [muito] socialmente.
No início do século XIX, feminizou-se a loucura. Em 2001 a OMS reconheceu o impacto da discriminação social de género na saúde e na doença mental. Em 2023, fazem-se contas e faltam 300 anos para alcançarmos a igualdade de género. Isto não é de loucos?
Não é a biologia, estúpidos! Historicamente, a saúde mental das mulheres concebeu-se em torno da função reprodutiva e preconcebeu-se tendo o sofrimento psíquico como característica feminina, típico de uma psique instável, emocional, frágil. Nada explica melhor esta perspetiva social das coisas como o diagnóstico preferido dos vitorianos, a histeria – hystera significa útero, palavra de etimologia grega e a origem de todas as insanidades mentais das mulheres. Nos anos 50 passou-se da má ciência à medicalização, com as novas soluções farmacológicas para a agora propensão biológica para a depressão, catalogada como doença feminina até aos anos 80. O mal continua a residir no útero, a explicação é que parece mais científica: é o ciclo menstrual que dita a maior prevalência das doenças mentais comuns nas mulheres. A imunidade da ideia à verdade social só termina com o milénio, aceitando-se que as relações sociais de género são uma determinante essencial da saúde mental das mulheres – bem-vindos à realidade.
É inegável que a complexidade hormonal e neuroquímica das mulheres entra no filme da sua saúde mental: o corpo masculino produz uma singela hormona reprodutiva, a testosterona; já o feminino vive em bipolaridade hormonal – 14 dias de predomínio da produção de estrogénio, outros 14 de produção de progesterona, cujas flutuações impactam na atividade dos neurotransmissores. Mas a protagonista desta fita é a complexidade psicossocial da existência feminina. Vários estudos indicam que na gestação da doença mental vem primeiro o stressor psicossocial, instala-se o stress, e só depois vem a resposta biológica. Na Suécia, comparam-se as respostas endócrinas dos géneros ao stress, nomeadamente os níveis de noradrenalina – hormona e neurotransmissor responsável pelas respostas rápidas ao stress, fazendo aumentar a energia química disponível, os batimentos cardíacos, o fluxo sanguíneo e a oxigenação. Resultado: ao chegar a casa, os níveis de noradrenalina dos homens diminuíam, restaurando com descanso o stress laboral; ao contrário, os das mulheres continuavam a subir, acumulando stress doméstico ao stress laboral. Será que não é o útero que predispõe as mulheres à doença mental, mas a sociedade que as trata como subproduto?
Menos igualdade, menos saúde mental. A desigualdade de género impacta e explica a maior incidência e prevalência de doenças mentais nas mulheres. Porquê? Por causa da amplitude de conteúdo e da subvalorização dos seus papéis sociais, face aos dos homens. Como é que impacta? Sublimando diferenças:
(1) Na incidência da doença mental. Em dupla ou tripla jornada quotidiana, as mulheres estão sujeitas a um conjunto mais diversificado e elevado de stressores psicossociais. A divisão de tarefas é uma utopia e o caregiving burden conjuga-se no feminino. Mundo afora, 2,4 mil milhões de mulheres em idade ativa não têm oportunidades económicas iguais e só lhes são reconhecidos juridicamente ¾ dos direitos dos homens. A incidência de trauma, gerado pela violência doméstica, violência sexual, assédio, agressão e abuso, é enorme. Agora sim, pode juntar-se a coadjuvante sofisticação neurobiológica feminina – a tempestade perfeita instaladora de depressão, ansiedade e perturbação de stress pós-traumático.
(2) Na procura de tratamento. A proatividade das mulheres na identificação de sintomas e procura de terapêutica médica bate a dos homens em muitos pontos – levando a uma sobrerrepresentação feminina nas estatísticas da saúde mental. Nesta sociedade ensandecida, os homens definem-se por oposição ao comportamento feminino preconcebido e, portanto, agem como se imunes à doença mental.
(3) Nas respostas do sistema de saúde. Esta proatividade, aparentemente a nosso favor, embate num gigantesco viés de género do sistema: nos diagnósticos que, estereotipados, levam a menores taxas de diagnose e tratamento, e à inadequação de cuidados; na sub-representação das mulheres nos ensaios clínicos – partindo de uma artificial igualdade de vivência social dos géneros, as amostras dos ensaios assumem o homem como protótipo populacional e extrapolam resultados; e na sobreprescrição das pilulas mágicas antidepressivas e ansiolíticas às mulheres.
A desigualdade de género interfere em toda o processo de doença mental – o gender gap afeta saúde mental, e é mais um intervalo em desfavor feminino.
Durante séculos, explicou-se uma diferença negativa na saúde mental das mulheres na biologia, por intuição, superstição e má ciência. Percebe-se hoje que não é a biologia mas a desigualdade de género que nos impacta negativamente a saúde mental. Gostava eu de ter esta panorâmica quando aos 29 anos tive o primeiro encontro [parlamentar] frontal com a desigualdade e consequente derrapagem mental sinuosa. Eu, fervorosa defensora dos benefícios da psicoterapia, não encontro divã onde caiba o preconceito coletivo para tratamento. Como mudar esta psicose desigual? Num mundo movido a números, nem as estratosféricas perdas globais geradas pela discriminação do género feminino são antipsicótico suficiente.
É mais fácil ser doido do que mulher: na escala do estigma e preconceito, mais depressa assumimos uma doença mental, do que do que reconhecemos às mulheres o mesmíssimo que aos homens.
* Em Portugal, o gender gap foi de 23,4%, ganhámos menos 13,3% do que os homens, e só 6% das empresas nacionais têm liderança feminina.
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