O senhor Muhammad, da mercearia da esquina, estava a vender fiado e corri para lá para me safar na fruta e na comida para o cão. A minha amiga Ainhoa abriu as portas de casa para outros pais e mães que, no seu fogão a gás, conseguiram fazer o jantar dos filhos. O meu vizinho Vinícius recuperou um antigo rádio a pilhas, que pôs na varanda para todos podermos ouvir as notícias. Outra vizinha, a Maria João, desceu um andar e foi fazer companhia, ao serão, à senhora idosa que estava sozinha e aflita com os seus medos da escuridão.
Imigrantes, portugueses, filhos aqui do bairro histórico no centro de Lisboa ou vindos do Interior do País para ganhar a vida na capital, não importa, todos de carne e osso com coração a bater, num sentido de comunidade que não se perde, dando informações e instruções aos turistas finalmente libertos dos tuk-tuks.
Durou umas horas até voltarmos todos a carregar as baterias dos telemóveis, a ligar as televisões e as playstations, mas não vamos falar aqui da beleza deste revivalismo comunitário e de outra época, com as crianças a brincar nos jardins e os vizinhos à conversa no vão de escada dos prédios – são saudosismos inconsequentes. Logo esquecidos, como se viu no pós-pandemia Covid-19.
Mas há situações que não deviam ficar esquecidas. Se na grande distribuição, vulgo hipermercados, houve portas abertas, com produtos como velas, água, leite ou enlatados a voarem das prateleiras (não fosse acontecer o apocalipse), com sistemas de pagamento por multibanco a funcionar, os supermercados de bairro, pertencentes às mesmas grandes cadeias de distribuição, fecharam as portas, mesmo para pagamentos a dinheiro, sem qualquer responsabilidade social para com as populações. É caso para perguntar: o que fizeram aos frescos?
Ainda numa dimensão social, a romantização dessa vida desconectada – que só tem lugar porque dura umas horas – ignora aqueles que vivem meses e meses sem luz ou água, nas barracas ou noutro tipo de alojamento, os que se debatem para pagar as contas, os que se aquecem no inverno com camadas de mantas porque o aquecimento das casas se torna uma impossibilidade aos preços atuais. Não há nada de romântico aqui, exceto na versão “brincar aos pobrezinhos” enquanto não se reinstala a normalidade, com posts no Facebook, palmas, foguetes e gritos de emoção, depois de umas poucas horas de desorientação.
Não são só as correntes comunitárias e de vizinhança que importam na hora da aflição. Importa também saber o que andaram a fazer os nossos eleitos numa área que não se revela apenas importante, mas sem a qual já não sabemos viver. Podemos contar com o Estado?
O primeiro-ministro, Luís Montenegro, diz que sim, garantindo que, “apesar de todas as adversidades resultantes de uma crise inédita, os serviços essenciais mantiveram-se em funcionamento e o Estado revelou capacidade de resposta”, adiantando que “sabemos que foi o aumento dessa tensão [na rede elétrica espanhola] que terá feito disparar os mecanismos de segurança que levaram a este apagão”.
Sem qualquer resquício de nacionalismo bafiento, antes como um país integrado numa União Europeia, convém perguntar: Porque dependemos tanto da rede elétrica espanhola? Vimos o antigo ministro da Indústria e da Energia, Luís Mira Amaral, proferir críticas contundentes à nossa produção energética, mais por inação do que por incapacidade.
“Deixemo-nos de conversas de que somos os maiores do mundo na transição energética. Temos de facto condições espetaculares, mas depois, do ponto de vista técnico, falhamos rotundamente”, apontou. Os nossos geradores estão parados e é mais confortável – e vantajoso – importar energia de Espanha, acrescentou, na SIC Notícias. Até ao dia em que um apagão nos mostra as mazelas da dependência.
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