No México começou uma azáfama nunca vista. No próximo dia 1 de junho, e pela primeira vez na sua história, cem milhões de mexicanos elegerão os seus juízes. Cerca de 3422 candidatos a várias instâncias iniciaram no passado dia 30 de março uma campanha eleitoral inédita que culminará com a sua apresentação a eleições e consequente sujeição a voto popular. Sendo este o primeiro país do mundo em que tal sucede a uma escala que percorre todo o judiciário, importa primeiramente fazer a radiografia dos acontecimentos que conduziram o México a este ponto.
O processo inicia-se com uma confrontação entre o ex-presidente López Obrador e o Supremo Tribunal Mexicano na sequência de decisões em que este tribunal colocou entraves a algumas das suas propostas políticas. Nessa sequência, e como já vem sendo hábito nas estratégias populistas, independentemente do quadrante político em que se inserem, iniciou-se de imediato um discurso de forte deslegitimação do poder judicial, designadamente com acusações de corrupção dirigidas aos juízes, criando-se uma retórica crescente propiciadora de uma desconfiança pública generalizada. Nas palavras de Obrador, era necessária uma “reforma da Justiça” para “livrar o judiciário da corrupção e garantir que ele responda à vontade popular”. Depois, aproveitando uma maioria parlamentar favorável, em setembro passado, o chefe de governo conseguiu fazer passar uma alteração legislativa de acordo com a qual os juízes mexicanos passariam, já em 2025, a ser eleitos diretamente pelos cidadãos. Numa votação parlamentar acelerada e deslocalizada para um pavilhão desportivo, a aprovação das medidas ocorreu já de madrugada debaixo de fortes protestos populares no exterior.
Os tempos que se seguiram foram marcados por mais protestos e greves que paralisaram o sistema de justiça e com deputados da oposição a virem denunciar casos de suborno, pressão e chantagens aquando da determinação do seu sentido de voto.
Ao contrário das eleições políticas, os candidatos a juízes não receberão formalmente qualquer financiamento para as suas campanhas, nem poderão contratar espaços publicitários na imprensa, rádio ou televisão, ou em painéis publicitários. Não será permitido fazer comícios em massa, apenas “reuniões sem megafones”
A presidente, entretanto eleita, Cláudia Sheinbaum, aliada de Obrador no Movimento Regeneração Nacional (MORENA), tendo tomado posse em outubro, de imediato se pronunciou publicamente afirmando: “O presidente é eleito pelo povo, o poder legislativo é eleito pelo povo. Se os juízes são eleitos pelo povo, onde está o autoritarismo?” O argumento tem tanto de sedutor, pelo simplismo com que se apresenta, como de básico e perigoso, face ao que estas ideias realmente implicam. Com efeito, com esta dita “reforma” judicial deu-se por imediatamente encerrada a carreira judicial de cerca de 1700 juízes e magistrados do país, assim como de cerca de 55000 funcionários judiciais. Da noite para o dia, sem processo disciplinar, sem justa causa, sem apelo nem agravo. Por outro lado, foram afrouxados os requisitos para as candidaturas, incluindo a desnecessidade de ausência de antecedentes criminais. Ao contrário das eleições políticas, os candidatos a juízes não receberão formalmente qualquer financiamento para as suas campanhas, nem poderão contratar espaços publicitários na imprensa, rádio ou televisão, ou em painéis publicitários. Não será permitido fazer comícios em massa, apenas “reuniões sem megafones”.
Ora, como está bom de ver, o problema que se coloca, desde logo, é um problema de transparência do sistema, visto que existe um risco real dos candidatos se socorrerem de financiamento ilegal, provindo de certos grupos económicos ou até de organizações criminosas. Os demais, que tentam manter-se no sistema do qual foram afastados pela “reforma”, têm-se sujeitado à venda de bens pessoais para financiarem campanhas fotográficas ou vídeos promocionais ou recorrido à criação de contas de Facebook, TikTok e Instagram, como forma de disseminarem a sua candidatura de modo gratuito.
O grotesco da situação chega ao ponto de ser claro que os candidatos com mais património ou com maior disponibilidade de tempo estarão também em condições de manifesta vantagem, visto que os que se encontrem em funções no poder judiciário não podem fazer campanha durante o horário de trabalho. Mas o mais insólito é perceber o modo como é feita apresentação do conteúdo dos “programas eleitorais”, em que candidatos vestidos de trajes tradicionais ou nos seus melhores trajes pessoais tentam “vender” a sua candidatura com promessas de profissionalismo, objetividade, independência, imparcialidade e autonomia. Outros criam slogans como “prometo que serei o mais independente e o mais imparcial para resolver os seus casos”. Os mais resignados acrescentam: “… é a única coisa que posso oferecer”.
Perante este cenário, a Relatora Especial da ONU para a Independência dos Juízes e Advogados, Margaret Satterhwaite, advertiu com propriedade que quanto mais político se torna o processo, mais riscos há de corrupção, visto que estas candidaturas já não envolvem apenas o mérito, mas antes implicam uma tentativa de chegar ao poder a qualquer custo. Aliás, a Relatora Especial enviou mesmo uma carta ao governo mexicano a expressar a sua preocupação com a reforma, pois que, no seu entender, esta não garante que os selecionados sejam os mais preparados, os mais impolutos ou os mais transparentes. Acrescentou ainda que se o objetivo era de facto fortalecer a independência e a capacidade de combate à corrupção, então as medidas a tomar deviam antes passar pelo fortalecimento dos órgãos existentes que garantem a independência do sistema judicial, em vez de se eliminar um sistema e substituí-lo por outro. Também a Federação Latino Americana de Magistrados (FLAM) manifestou a sua incredulidade emitindo uma declaração pública em que alerta que “a reforma mexicana, ao submeter a seleção de juízes ao voto popular, introduz um risco significativo de politização do Poder Judiciário. Os juízes, em vez de serem selecionados pelo seu mérito e competência, serão eleitos pela sua capacidade de atrair votos, o que compromete sua imparcialidade e autonomia.”
Assim, o que sucederá a partir do dia 1 de junho é que os juízes em funções que não forem eleitos perderão os seus cargos através de um mecanismo de intervenção política na composição do poder judicial, tanto mais que os próprios candidatos foram escolhidos por comités de avaliadores controlados pelos poderes executivo e legislativo. Esta decisão anula o poder judiciário enquanto poder independente que exerce um contrapeso relativamente aos demais poderes do Estado, remetendo-nos para um cenário típico do ressurgimento dos regimes autoritários. Um poder judiciário dependente do voto popular, com tudo o que as campanhas públicas implicam, vincularia os candidatos aos interesses da franja que os elegeu ou apoiou, comprometeria a sua imparcialidade na aplicação universal da lei e torná-lo-ia vulnerável a grupos de pressão com suficiente poder para alterar a sua situação profissional.
Porque estas ideias, volta e meia, também são atiradas por cá, importa ter presente que o sistema português de nomeação de juízes está bem sedimentado na lei e na constituição e acompanha os modelos modernos e progressistas das demais democracias europeias. Porém, aqui como no resto da Europa, a imunidade ao iliberalismo só se alcançará mediante uma real consciencialização para os perigos do seu advento, importando que o reforço da independência judicial não ceda perante as tentações populistas. Relembrando a opinião nº1 do Conselho Consultivo dos Juízes Europeus sobre os padrões relativos à independência do poder judicial e à inamovibilidade dos juízes, “a independência judicial não é um privilégio para os juízes, mas em benefício dos cidadãos, aqueles que procuram a justiça.”
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