A Europa gosta de se ver como uma potência digital. Mas basta olhar para a realidade para perceber o desfasamento entre o discurso e os factos. Enquanto os Estados Unidos e a China disputam a dianteira nas tecnologias emergentes do 5G à Inteligência Artificial (IA) generativa – a União Europeia continua a correr atrás, mais preocupada em criar regras do que em gerar inovação.
Sim, Bruxelas é uma máquina regulatória. Foi assim com o RGPD, está a ser agora com o AI Act. Mas regular não é liderar. A capacidade de moldar normas é importante, mas não substitui a capacidade de criar, escalar e dominar tecnologia. E nisso, a Europa está a falhar… sistematicamente.
Este atraso não é apenas um problema económico. É um risco geopolítico. Em tempos de fragmentação internacional, onde a tecnologia é usada como instrumento de influência, poder e dissuasão, depender de terceiros para infraestruturas críticas (redes 5G, computação em cloud, chips ou inteligência artificial) é uma vulnerabilidade estratégica. É colocar soberania nas mãos de empresas e países com agendas próprias. E, acreditem, essas agendas são bem diferentes das nossas.
A guerra na Ucrânia tornou isso evidente. A resiliência digital e a capacidade de proteger infraestruturas tecnológicas tornaram-se parte integrante da segurança nacional. Aliás, a Ucrânia só se mantém da forma que está muito derivado à Starlink – proveniente de uma das tais empresas com agendas próprias. Ciberataques, campanhas de desinformação e manipulação algorítmica são hoje armas tão eficazes quanto os tanques – e muitas vezes mais baratas. A questão já não é apenas quem tem a tecnologia, mas quem controla os sistemas, os dados e os fluxos de informação.
Há várias razões para este atraso crónico. Primeiro, a fragmentação do mercado europeu. Lançar uma empresa digital na Europa continua a ser um processo doloroso: diferentes línguas, sistemas fiscais, regulamentações. O que nos EUA é um mercado unificado de 300 milhões de pessoas, na UE é uma colcha de retalhos.
Depois, há a questão da cultura de risco – ou melhor, da falta dela. Inovar é arriscar, falhar, tentar outra vez. Mas num continente onde o fracasso é estigmatizado e os regimes de insolvência penalizam quem tenta, o incentivo ao “e se tentarmos” é fraco. Os talentos saem, o capital foge e a inovação muda a sua morada fiscal para outros lados.
A isto, soma-se a lentidão política. Enquanto os EUA anunciam pacotes bilionários de investimento em semicondutores e IA (e, sim, neste momento, não é propriamente a melhor altura para elogiar os Estados Unidos), e a China subsidia o seu ecossistema tecnológico com mão pesada, a UE continua a discutir princípios. A ambição está nos discursos, mas não nos orçamentos. E sem dinheiro, não há autonomia tecnológica, como Draghi e muitos evidenciaram.
A narrativa da “autonomia estratégica” tornou-se um mantra em Bruxelas, especialmente depois da pandemia e da guerra na Ucrânia. Mas, até agora, é mais retórica do que realidade. A Europa continua dependente de infraestruturas chinesas, de plataformas americanas e de energia externa. E no campo da IA generativa, onde está a resposta europeia à OpenAI, à Google DeepMind ou à Anthropic? Não está.
Na prática, esta dependência mina a capacidade da Europa de afirmar os seus valores e de defender os seus interesses. Como pode um continente falar em soberania digital, se não controla a base tecnológica do seu próprio futuro?
Regulamentar é importante – e a UE tem razão em querer proteger direitos fundamentais e valores democráticos. Mas isso não pode servir de desculpa para a ausência de ambição industrial. Sem um verdadeiro investimento em talento, infraestrutura e tecnologia própria, a Europa arrisca-se a ser apenas um espectador num jogo onde outros definem as regras.
Se não quiser ficar para sempre um passo atrás, a Europa tem de mudar de mentalidade. Menos cautela, mais risco; menos papel, mais inovação. E, sobretudo, mais visão estratégica. Porque no século XXI, quem não tiver soberania tecnológica, não terá soberania nenhuma.
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