Estamos habituados, nos últimos anos, sobretudo em solo europeu, a ouvir que as novas eleições norte-americanas são as mais preponderantes deste século. Isto deve-se, não só, à conjuntura geopolítica mundial, marcada pela tensão e confrontos (políticos, económicos, tecnológicos, culturais) em várias regiões, envolvendo direta ou indiretamente super-potências, mas também, consequência desta conjuntura, pelas posições dos candidatos à Casa Branca – nomeadamente, as suas visões sobre a presença dos EUA no mundo e à relação que têm com os seus parceiros, principalmente a União Europeia.
Com as eleições de 2024 dos Estados Unidos aí à porta, cresce a preocupação em torno de um dos maiores receios da democracia liberal (norte-americana e não só, diga-se): a integridade do sistema eleitoral e a possível manipulação por forças externas e internas. O conceito de “hacking democracy” — interferência tecnológica e de informação que busca influenciar resultados eleitorais e minar a confiança pública —, presente nos compêndios de “guerra híbrida”, “guerra cibernética” ou “guerra cognitiva, tornou-se um dos maiores desafios à estabilidade democrática das últimas décadas.
A contextualização de um fenómeno (quase) impossível de parar
O termo “hacking democracy” transcende a ideia tradicional de violação de sistemas computacionais. O conceito ganhou relevância global em 2016, quando a intelligence norte-americana concluiu que a Rússia, sob ordens diretas do Kremlin, interveio ativamente nas eleições presidenciais. O uso de hackers, “trolls”, bots automatizados e campanhas coordenadas de desinformação tornaram-se estratégias eficazes para polarizar a sociedade americana, enfraquecer instituições democráticas e favorecer determinados candidatos.
Indo à raiz das interferências digitais em contextos eleitorais, recordemo-nos do paradigmático caso da Estónia, nas eleições de 2007. Este é um exemplo crucial para entender-se os dias de hoje.
Resumidamente, esta operação contra a Estónia visou tanto as suas infraestruturas governamentais quanto privadas. Ocorreu no meio de graves tensões políticas com a Rússia, relacionadas à remoção de uma estátua soviética em Tallinn. Para enquadrar o leitor, durante várias semanas, sites do governo, dos bancos, de órgãos de comunicação e até de partidos políticos foram alvo de ataques DDoS. A intenção era desestabilizar e paralisar a infraestrutura digital da Estónia. Ou seja, não só o ataque afetou serviços essenciais, incluindo sistemas bancários e de telecomunicações (as operações financeiras foram interrompidas, causando grandes transtornos à economia e à vida dos cidadãos), o site do governo ficou offline – dificultando o acesso a informações oficiais -, mas também portais de notícias e meios de comunicação social foram atacados, afetando a capacidade dos média de informar o público, aumentando o pânico, a confusão e intensificando a disrupção.
“Hackear” sistemas não é assim tão difícil
A segurança da infraestrutura de votação tornou-se uma preocupação crucial devido ao potencial de ataques cibernéticos para perturbar o processo eleitoral. Este tipo de operação pode visar diversos componentes da infraestrutura eleitoral, desde sistemas de inscrição em listas eleitorais até máquinas de votação e sistemas de informação administrativos.
Países que adotam máquinas de votação eletrónica enfrentam desafios adicionais, exigindo a implementação de políticas de segurança específicas. Testes conduzidos em países como Estónia, Suíça e França identificaram vulnerabilidades críticas, ressaltando a necessidade de medidas de proteção mais robustas.
Os ataques cibernéticos à infraestrutura de votação podem ter várias motivações. Podem ser usados para adiar a votação, ou para atrasar a eleição de um partido desfavorecido. Além disso, podem ser direcionados para apagar votos, minando a confiança dos eleitores nas instituições e representantes; mas também para alterar a contagem de votos.
Na Ucrânia, durante as eleições presidenciais de maio de 2014, ocorreram ataques num contexto marcado por graves tensões políticas e militares (recorde-se, a anexação da Crimeia).
A infraestrutura eleitoral ucraniana tornou-se um alvo principal para ataques cibernéticos vários dias antes das eleições, quando o sistema eleitoral central da Ucrânia foi comprometido, resultando na exclusão de arquivos críticos essenciais para a contagem de votos. Essa intrusão cibernética tornou o sistema de contagem de votos inoperável. Embora o sistema tenha sido restaurado usando backups, os resultados das eleições foram atrasados por duas horas.
Antes das eleições, “CyberBerkut”, um grupo hacktivista – alegadamente operado pelos serviços de inteligência russos GRU -, divulgou prints como prova do sucesso da operação. Além disso, houve tentativas de manipular o resultado das eleições através da instalação de um malware destinado a falsificar a totalidade dos votos computadorizados.
Outras técnicas, em várias geografias (… todas elas geopoliticamente importantes)
Mas há outras operações igualmente comuns e eficazes. “Hack and Leak”, por exemplo, envolvem um planeamento de uma intrusão cibernética de longo prazo, visando sistemas de informação de um partido político ou a um candidato a uma eleição. Em 2016, durante a eleição presidencial dos EUA, cerca de 19 000 emails internos do Comité Nacional Democrata foram comprometidos e expostos por uma operação cibernética, segundo o que dizem, de origem russa, conduzida pelos grupos APT28 e APT29, operados pelos serviços de inteligência russos (GRU e SVR).
A mesma técnica – uma identidade falsa a reivindicar a operação – foi posteriormente usada em 2017 para a operação “MacronLeaks”. Mais de 20.000 emails internos relacionados com a campanha de Macron foram expostos, durante as eleições presidenciais francesas desse ano, dois dias antes da votação final. Novamente, várias investigações atribuíram a ação à intelligence russa, GRU.
Em fevereiro de 2024, as eleições em Taiwan foram amplamente visadas por operações de ciber-influência, algumas delas ativas desde 2018. Uma pesquisa sobre as eleições locais de 2018 concluiu que a desinformação influenciou a perceção de cerca 50% dos eleitores taiwaneses sobre notícias e as suas escolhas de voto. Notavelmente, eleitores politicamente não afiliados, mais suscetíveis às informações falsas, tenderam a apoiar candidatos alinhados com o Kuomintang, favorável à China.
Voltando ao Tio Sam
As eleições presidenciais de 2016 dos EUA marcaram (ou intensificaram) o início de uma nova era de preocupação com a interferência estrangeira. A CIA e o FBI confirmaram que hackers russos atacaram sistemas de registo de eleitores em pelo menos 39 Estados e tiveram acesso a software utilizado para gerir os processos de votação. Embora não haja evidência de que houve alteração de votos, o simples acesso aos sistemas colocou em xeque a integridade do processo eleitoral.
Além dos ataques cibernéticos, a interferência russa incluiu uma extensa campanha de desinformação nas redes sociais. Perfis falsos, operados por trolls russos, disseminaram mensagens polarizadoras e manipulativas. Essas mensagens reforçavam teorias da conspiração e ampliavam tensões sociais pré-existentes, como questões raciais, imigração e a questão das armas.
Quatro anos mais tarde, o mesmo. Apesar de não haver indicações de que atores estrangeiros tenham tentado alterar qualquer aspecto técnico do processo de votação nas eleições dos EUA em 2020, o relatório do Diretor de Inteligência Nacional avalia que a China, a Rússia e o Irão conduziram campanhas de desinformação e ciber-influência contra as eleições. As operações russas tinham como objetivo “denegrir a candidatura do Presidente Biden e do Partido Democrata, apoiar o ex-Presidente Trump, minar a confiança do público no processo eleitoral e agravar as divisões socio-políticas”. O Irão utilizou técnicas semelhantes, mas com um objetivo diferente: minar as perspetivas de reeleição de Trump, embora sem promover diretamente os seus rivais.
Além disso, durante estas eleições, observou-se uma crescente interferência de atores domésticos, utilizando as mesmas técnicas de disseminação de desinformação, adotadas por países estrangeiros. A proliferação de fake news, exacerbada pelo uso de redes sociais, levou a um aumento sem precedentes na desconfiança do público em relação à segurança e legitimidade das eleições.
Perante isto, não sabemos o que pode aí vir
É certo que a administração Biden teve especial atenção às vulnerabilidades cibernéticas dos EUA, com o refinamento da segurança cibernética eleitoral, a melhoria na cooperação federal-estadual, o reforço da resiliência das infraestrutura crítica e o aumento da consciencialização pública e política, perante ataques e desinformação estrangeira.
No entanto, continuam a haver grandes vulnerabilidades no sitema eleitoral norte-americano. A fragmentação do mesmo coloca em sérios riscos às eleições deste ano, num contexto, por si só, bastante complexo. O sistema eleitoral dos EUA é altamente descentralizado, com cada Estado sendo responsável pelas suas próprias regras, tecnologia e infraestrutura de votação. Apesar dos investimentos, os sistemas continuam antiquados e desatualizados, com padrões de segurança desiguais entre os Estados, aumentando as suas vulnerabilidades. Além disso, a fragmentação dificulta uma resposta nacional coesa às ameaças.
O uso de ransomware (extorsão por meio de sequestro de dados digitais) é também uma ameaça crescente. Em 2020, autoridades federais e estaduais enfrentaram um aumento significativo no número de tentativas de ataques cibernéticos contra sistemas eleitorais, um problema que certamente continuará a ser uma preocupação em 2024.
A disseminação de desinformação por meio de redes sociais continua a ser uma ferramenta poderosa para minar a confiança pública nas eleições. A manipulação de algoritmos para aumentar a visibilidade de mensagens polarizadoras e a criação de contas falsas continuam também a ser desafios significativos.
Nesse sentido, os Estados Unidos enfrentam riscos contínuos e possivelmente exacerbados nas eleições de 2024. A erosão da confiança pública nos processos democráticos, resultado da desinformação e das alegações infundadas de fraude, torna o eleitorado mais suscetível à manipulação. A possibilidade de que atores estrangeiros — e internos — aproveitem essas divisões para influenciar os resultados eleitorais ou provocar caos é significativa.
A combinação de tecnologias vulneráveis, uma infraestrutura eleitoral fragmentada e a proliferação de fake news criam um terreno fértil para a disrupção. Além disso, a crescente tensão política e securitária no país e fora dele, cria um ambiente propício para que atores malignos prosperem.
A democracia está mesmo sob ataque.
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