Cultura e pedantismo andam, infelizmente, muitas vezes de mãos dadas. Há quem ache que por ler Dostoiévski e frequentar a Gulbenkian é superior aos meros mortais que não o fazem. A ideia de que ler grandes obras e estar a par da última trend ou meme da internet são polos opostos prevalece firme na nossa sociedade e ainda mais no meio intelectual português. Como se fosse impossível conhecer a obra da Clarice Lispector e seguir a loucura pelo chocolate do Dubai ao mesmo tempo. Não é.
Existem graves problemas no ensino em Portugal no que toca à disciplina de Português. Os programas, a meu ver, parecem estar desenhados especificamente para tratar a literatura como mero objeto de análise gramatical e técnica. Não se está a ensinar a paixão pela leitura nas nossas salas de aula. Qualquer autor, submetido a divisões por orações e identificado de recursos expressivos fica aborrecido. Assim perdemos leitores de Fernando Pessoa, Eça de Queiroz e Camões.
Felizmente, em anos recentes, através das redes sociais, os jovens voltaram a descobrir o amor pelos livros. Dados de 2023 citados e utilizados pela APEL – Associação Portuguesa de Editores e Livreiros mostram que o mercado editorial cresceu cerca de 7% nesse ano e isso muito se deveu aos jovens leitores entre os 25 e 34 anos, que são quem mais compram livros. Guess what? Utilizadores de TikTok e Instagram.
Que bom que o BookTok existe e incentiva a leitura. Que bom que existe o Goodreads, onde toda a gente pode escrever sobre os livros que lê. Que bom que há milhares de canais de YouTube com escritores, leitores e críticos. Só ganham os livros, as livrarias, as editoras, os escritores e, acima de tudo, os leitores.
As redes sociais são um fenómeno do nosso tempo. Utiliza-as quem quer, como quer. O facto de um artista as usar bem para promover o seu trabalho não deve ser motivo para desvalorizar o seu sucesso. Saber fazer marketing no Instagram é uma qualidade perfeitamente conciliável com o talento para a escrita, pintura, escultura, o que for. A época do artista recluso e fechado em si, trancando numa casa a sofrer pela arte sem falar com ninguém já foi. Esse charme morreu. Não vivemos mais nesse imaginário depressivo. A mesma coisa se aplica ao leitor. Um ávido leitor não tem de ser alguém sem conta no TikTok, sem fotos partilhadas no Instagram ou opiniões publicadas no Twitter.
Pois num recente episódio do podcast da Livraria Martins foi veiculada uma opinião… diferente, à antiga. Com um cheiro a mofo capaz de ser sentido através de um qualquer ecrã a passar o dito podcast.
Um dos seus intervenientes, João Pedro George, ao tentar fazer crítica literária, perdeu-se pelo Instagram da escritora Madalena Sá Fernandes. De crítica literária passou a show de revista cor-de-rosa sem qualquer nexo. E muito, mas mesmo muito preconceito.
Este autor encarnou na perfeição a nova ala de influencers que está a fabricar jovens adolescentes homens frustados com a sua masculinidade. Em vez de se focar no livro que tinha à frente – Leme – e avaliá-lo literariamente, focou-se nas fotos que Madalena Sá Fernandes publica no Instagram para promover o seu livro. Segundo ele, fotos que não combinam com o tema do livro (violência doméstica). George não estava à espera de ver fotos “semi-nua” e “muito florida”, com corpo “muito exuberante” que mostram os “atributos”. Um mix muito feio de machismo e inveja pura.
Se provas fossem necessárias para comprovar que ler muito e ter PHDs não faz de ninguém melhor pessoa, aqui estão para toda a gente ver. Que cena triste a que se passou naquele podcast.
Assim se vê que ler e passar um tempinho no Instagram se calhar faz bem. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, sempre ouvi dizer. Viva os jovens leitores que apreciam um bom calhamaço e uma dancinha de TikTok.
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