Atribui-se a Gouveia e Melo a seguinte frase: “Se eu algum dia for para a política, deem-me uma corda, para me enforcar!” Em 1976, o próprio general Eanes (de quem também não se conhecia um único pensamento político e não foi por isso que os principais partidos o não apoiaram convictamente…), pressionado a candidatar-se a Belém, dizia aos mais próximos: “Deviam ter pensado antes no [Vasco] Rocha Vieira [também militar, recentemente falecido], esse é que percebe de política!” E agora, eis o refluxo de uma época: foi você que pediu um Eanes de segunda geração? Pois aqui o tem.
Se o artigo de Henrique Gouveia e Melo, publicado no Expresso, é, genericamente, uma coleção entediante de lugares-comuns, ele tem o supremo mérito de esclarecer o País de que não estamos perante nenhum bicho-de-sete-cabeças armado em ditador para destruir a democracia. Na verdade, o la paliciano título que fez manchete no Expresso, “O Presidente não está ao serviço dos partidos”, ideia extraída do artigo, é já uma peça do combate político que aí vem: Gouveia e Melo diz uma evidência com a intenção de insinuar que os seus adversários, esses sim, são suspeitos de estar ao serviço dos partidos, uma tese mais desenvolvida, no texto, e que pretende servir de carapuça aos únicos candidatos anunciados, Marques Mendes e Mariana Leitão –, mas que terá alguma dificuldade em encaixar em António José Seguro, visto que este, tudo o indica, se se candidatar, será a contragosto do PS… Portanto, a principal conclusão deste artigo (em larga medida dececionante) é a de que Gouveia e Melo, tão cinzentão como os demais, inicia um combate político corriqueiro, com os argumentos habituais e de forma nenhuma assustadores. A principal desilusão é que também não inova.
Se fizermos, porém, uma análise mais fina à sua primeira grande mensagem, identificamos nela um potencial de conflito entre a Presidência e os partidos que recupera – linha a linha – os tempos áureos do Presidente Ramalho Eanes quando, a partir de Belém, conseguiu exasperar dois primeiros-ministros de dois partidos diferentes, Mário Soares, do PS, e Sá Carneiro, do PSD. É esse perfil demasiado parecido com o de Eanes que está a assustar, de novo, os partidos. E se a História se repete e Gouveia e Melo tiver um projeto bonapartista de formação de um grande movimento, a partir de Belém, como chegou a parecer o PRD de Ramalho Eanes? Embora os presidentes detenham, hoje, depois da revisão constitucional de 1982, menos poder do que no tempo de Eanes, a legitimidade de Gouveia e Melo pode ser ainda maior do que a do seu “modelo”. É que Eanes chegou a Belém com o apoio, precisamente, dos partidos do sistema, enquanto Gouveia e Melo aspira a lá chegar dispensando esse apoio. Se isso suceder, as duas legitimidades, a parlamentar e a presidencial, chocar-se-ão com muito mais estrondo, o que representa, por si só, um risco para a estabilidade. Mas é um risco que Eanes, perante governos minoritários do PS, primeiro, e maioritários da AD ou do bloco central, depois, também sempre representou, afinal.
Um exemplo: ao sugerir que o incumprimento flagrante de promessas eleitorais possa ser motivo para a dissolução da Assembleia da República (embora nada, na Constituição, o autorize…), Gouveia e Melo invoca os mais duros discursos do Presidente Eanes. Antes de 1982, porém, o PR podia despedir um chefe do governo sem dissolver a AR, enquanto hoje, só interrompendo a legislatura, isso seja (praticamente) possível. Esta terá sido, talvez, a declaração mais inquietante do artigo, mas não deverá passar de uma bravata eleitoralista.
Depois de um ciclo de presidências “doces”, o eleitorado tende a mudar para ciclos de presidências austeras (e vice-versa): Cavaco depois de Sampaio, Marcelo depois de Cavaco. Essa “severidade” é uma aposta clara de Gouveia e Melo para seduzir eleitores fartos de selfies. O seu recado é correspondente: “O Chefe de Estado usa a palavra seguindo a regra da relevância, isenção, equilíbrio, contenção e gravitas.” Este bem podia ser, também, o retrato de Ramalho Eanes ou, pelo menos, o retrato com que os portugueses, retrospetivamente, ficaram dele… Ao assumir-se “entre o socialismo e a social-democracia”, procura seduzir o centrão entre o PS e o PSD, mas revela uma certa candura: sendo frentistas e abrangentes, ambos os principais partidos representam muito mais do que as suas denominações de origem – “socialista” ou “social-democrata” –, quando não se afastaram irremediavelmente delas. Entretanto, para o debate com André Ventura, é melhor que esteja preparado: tendo em conta a forma como privilegia o espetáculo e os gestos de efeito, o candidato do Chega vai, em pleno estúdio, oferecer-lhe uma corda. Vai uma aposta?…
Golpe de Vista
A ironia é um risco, mas lá vai…
Em 1975, em pleno gonçalvismo, com um primeiro-ministro protocomunista e suspeito de simpatias soviéticas, Portugal viu ser-lhe vedado o acesso a informação classificada da NATO. De que está à espera a Organização do Atlântico Norte para fazer o mesmo, agora, com os Estados Unidos da América?…
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