Perceções, perceções e mais perceções: nunca a arte de percecionar esteve tão em voga em Portugal. Sempre se ouviram perceções, claro, isto é não é uma novidade: “tenho ideia que aquele restaurante é bom, tem sempre tanta gente…”; “acho que aquele filme é bom, é a perceção que tenho pelo que tenho ouvido…”; “o último álbum da Beyoncé deve ser fantástico, digo eu…”. Todos temos uma ideia sobre tudo. Agora a moda pegou nos políticos portugueses, que, alguns, de tanto percecionarem, começaram a ter dificuldades em ler e analisar documentos de entidades públicas. Porém, há algo mais a dizer sobre o facto de a perceção de que a criminalidade em Portugal se agravou estar a ganhar uma popularidade significativa.
Se a perceção de que a insegurança e a criminalidade aumentaram está a ganhar uma proporção relativamente grande, é porque quem defende a perceção oposta não está a fazer o suficiente – longe disso – para contrariar esta ideia. Apresentar gráficos? Citar números de cor e salteado? As pessoas não são uma prova de defesa de mestrado ou uma instituição a quem se apresenta uma versão curta de um relatório maior. Que algo fique claro: sim, os números provisórios que a PSP divulgou acerca da criminalidade revelam que Portugal está a fazer um bom trabalho na redução da criminalidade, visto que a tendência mostra que esta está, precisamente, a diminuir. Mas isto por si só não basta. Há outra coisa que deve ficar absolutamente nítida: não são relatórios que vão mudar as ideias dos cidadãos.
Tenho visto muitos comentadores que defendem o que está nos relatórios – é a única posição decente, evidentemente – de forma pouquíssimo eficaz. Enquanto a extrema-direita constrói realidades paralelas, os moderados e a esquerda mostram setas em gráficos e tabelas de Excel. Torna-se óbvio o porquê de uma simples verdade – Portugal não tem um problema de criminalidade – estar a ser tão colocada em causa. Até comentadores mais jovens – como eu – que têm a obrigação de saber que o mundo mudou e a comunicação está totalmente diferente daquilo que era, não se vá tão longe, há 10 anos, estão a usar as ferramentas dos mais velhos – muito mais velhos… – e incorrem em explicações técnicas e matemáticas. Muitos deles são até consultores políticos e por essa razão ainda mais me aflige que não saibam, eles próprios, comunicar bem no sentido de construir uma narrativa que ilustre os factos e não que os deixe soltos por aí, ao sabor do vento e de quem os quiser utilizar. Os factos não andam por si mesmos. Os números são manipuláveis e encaixam onde os quisermos encaixar. Os gráficos são, perdoe-me a ousadia, caro leitor, uma seca que nenhum trabalhador quer aturar após chegar a casa do trabalho às 19h30 da noite. Narrativa, narrativa, narrativa. É aqui que os moderados e a esquerda se devem concentrar e não em cedências ao vocabulário da extrema-direita: “valores europeus”, “a cultura do país”, “modo de vida”. Haja paciência. Os valores europeus são os do respeito por todos, independentemente da sua cor, do seu país, da sua língua e da sua religião. A cultura de Portugal é a cultura da imigração, de um povo trabalhador que ainda luta por uma economia mais especializada e robusta. O modo de vida é o da paz social, da integração e da capacidade de crescer com as culturas à sua volta.
Há quem tente turvar propositadamente os tópicos da integração e a segurança do País, exaltando os medos e receios do desconhecido. Pois bem, a segurança é um desígnio nacional da maior relevância e que deve ter todos os meios para ser eficaz. Aliás, apenas num país seguro é possível existir prosperidade. Esse motivo devia ser por si só o mote para uma maior valorização das carreiras dos profissionais de segurança pública e um maior investimento nos recursos necessários para que os mesmos possa fazer o seu trabalho bem feito. O que se não deve fazer é instrumentalizar os profissionais de segurança para batalhas políticas. Estas entidades estão, antes de mais nada, ao serviço do povo, do bem comum, de todos os cidadãos: protegem-nos todos os dias e garantem que as nossas ruas são seguras. Há que respeitar mais este trabalho. E isto não é incompatível com uma defesa de políticas de integração de migrantes, de proteção dos mais vulneráveis e de legalização de quem quer cá trabalhar e constituir vida. Devem aliás, estes dois pontos, andar de mãos dadas. Forças de segurança bem preparadas e munidas de recursos técnicos e processos ágeis de legalização e receção de migrantes fazem parte de uma política pública sensata e moderada.
São as dicas que deixo aos demais moderados e defensores dos factos: comunicação mais eficaz, construção de uma narrativa simples e apelativa, não usar as forças de segurança enquanto arma política e defender investimentos significativos nos processos de legalização para que ninguém fique em situações frágeis e vulneráveis. Integrar é a nossa maior arma.
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