Anda sempre curvada. O corpo dobrado, como se se tivesse partido ao meio, impossível de endireitar. O rosto virado para o chão. Caminha pelo bairro, tratando da sua vida, fazendo recados, carregando sacos, vergada, mesmo quando não traz pesos. É uma das figuras de Campo de Ourique. Passo por ela muitas vezes, mas não lhe consigo reproduzir o rosto na memória, talvez porque ele está sempre virado para baixo, talvez por que já não nos cruzamos há algum tempo. Mas lembro-me dela enquanto me apercebo como se me curvam as costas.
Não é uma coisa nova. “Endireita as costas”, ouvia o meu pai dizer-me, ainda muito miúda, enquanto tentava puxar-me para trás os ombros. Endireitava-me. Mas o esforço deixava-me dorida e rapidamente os ombros deslizavam para a frente, projetando a coluna numa curva a ameaçar tornar-se corcunda. Estar de peito aberto e queixo levantado parecia-me exibicionismo a mais para a timidez que ainda hoje tento disfarçar. As raparigas aprendem cedo que dar nas vistas nem sempre é boa ideia. Na maior parte das vezes, não é.
Não é uma coisa nova e é cada vez mais difícil ensinar o corpo a estar direito, ao mesmo tempo que se passa tanto tempo a olhar para o chão, a apanhar roupas e brinquedos espalhados pela casa, a reparar no que está sujo, no que ficou fora do sítio, no que é preciso arrumar. Baixo-me uma e outra vez. E torno a baixar-me, porque há sempre qualquer coisa que ficou esquecida. E é preciso repor a ordem no mundo.
Às vezes penso que há coisas que só as mulheres conseguem ver. Por estarem de olhos cravados no chão, a olhar para o que parece invisível, para o que se pisa, para o que se ignora. Sempre com a sensação de que, se desviarmos os olhos do chão, ele vai abrir-se e desabar. É por isso que nos é difícil desviar os olhos, mesmo quando nos dizem para ignorarmos, para deixar estar, para nos distrairmos e descansar. É que acreditamos mesmo que a ordem no mundo depende desse nosso gesto permanente, que tudo cose, tudo repara, tudo repõe.
Mas é preciso endireitar as costas e erguer a cabeça. É preciso não ter medo de abrir o peito e olhar nos olhos quem nos quer curvadas.
“Caladinha é que tu estás bem”, “havias de ser violada por um indiano”, “quando fores raptada logo vês”, “calada, és uma puta”, “tem vergonha”, “tem juízo”. “És bonita, é pena seres tendenciosa”, “deves ter a mania que és inteligente”. As mensagens são constantes, quase sempre acompanhadas de comentários ao aspeto físico, sempre que falo em público para denunciar o racismo, a xenofobia, o ódio e a manipulação. Quando as leio, endireito um pouco mais as costas.
Um inquérito da UNESCO, publicado em 2020, revela que 73% das mulheres jornalistas foram vítimas de ataques de violência digital. Isso teve consequências: 30% destas mulheres admite ter começado a evitar tratar determinados temas, 20% deixou de ter presença digital e 13% teve de adotar medidas especiais de segurança. E há cada vez mais evidências de que este tipo de ataques é feito por trolls organizados, de forma especialmente dirigida, com propósitos políticos.
Não são só homens zangados, isolados, com tempo demais nas mãos e a coberto do anonimato das redes. Basta ver como muitos destes comentários são feitos por contas sem o rasto digital normal para perfis de gente de carne e osso.
Há quem esteja a investir para financiar ataques massivos a mulheres no espaço digital, para que essas vozes se calem, para que alguns temas se tornem impossíveis, para que fiquemos de costas vergadas e olhos presos ao chão.
A todos os que usam o insulto, a intimidação, a humilhação, a ameaça, tenho só uma coisa a dizer: não vão conseguir.