Os tempos não estão de feição. E se a liberdade for só um intervalo? E se a noite for a regra e os dias inteiros e limpos uma exceção? “Vem aí uma tempestade”, comenta-se, enfiando as mãos nos bolsos e as orelhas entre as golas do casaco. Tantas conversas acabam hoje em ombros que se encolhem como que para deixar passar uma onda que nos parece querer engolir. À espera que passe.
Este país parece órfão, sempre à espera de um pai. Olho para trás cem anos. A História já quase lhe apagou o nome, que resiste em avenidas, cravado na pedra, escrito em moradas, já sem emoção. Sidónio Pais. Alguém sabe quem é? Era um homem numa farda, alto, bonito, de olhos doces. Fernando Pessoa escreveu-lhe um poema, ainda mal o seu corpo tinha arrefecido, morto num atentado no Rossio. Chamavam-lhe o “Presidente Rei”, porque, tendo sido eleito, fez da Constituição uma letra morta e concentrou poder como nenhum outro até então tinha feito nessa República ainda jovem.
Sidónio Pais acabou morto, dias depois de um primeiro atentado ter falhado. E o povo saiu à rua para o funeral do homem que criou as sopas dos pobres, devolveu poderes à Igreja e lidou com mão de ferro com a oposição, num tempo em que as bombas, os tiros e os sobressaltos eram constantes, o País começava a acreditar que a democracia talvez fosse apenas um pântano impossível e os poetas suspiravam por uma ditadura capaz de fazer reinar uma ordem que parecia a única rima possível com o progresso.
Mas Sidónio não estava morto. Fernando Pessoa sabia-o bem. “Em nova forma ou novo alento,/Que alheio pulso ou alma tome,/Regresse como um pensamento,/Alma de um nome!”, escreveu o poeta, que sabia que os homens providenciais são imortais. Importa pouco que cá estejam, o que conta é a semente da sua ideia. E foi por sabê-lo que Pessoa escreveu, parecendo adivinhar que oito anos depois a República Nova de Sidónio ajudaria a construir o Estado Novo de Salazar, que o “Presidente Rei” morto era “Precursor do que não sabemos,/Passado de um futuro a abrir”.
Sidónio Pais era então, para Pessoa, “o desejado”. O desejo é na política portuguesa uma espécie de devoção religiosa que se projeta sobre figuras que nos parecem salvíficas. Queremos ser salvos. Esperamos por manhãs de nevoeiro. Temos saudades de um futuro que nunca foi porque não o conseguimos imaginar.
A nossa imaginação leva-nos quase sempre a um passado que construímos como um sonho, limando-lhe arestas, tornando-o bonito e dourado onde era escuro em feio. Vi uma vez um comentador desportivo alemão dizer sobre uma seleção portuguesa de futebol, cheia de estrelas mas sem golos, que os portugueses são “os poetas da inconcretude”. E talvez nunca ninguém nos tenha dito tão bem.
Estamos à espera do futuro na paragem do autocarro do passado, como a música do Sérgio Godinho em que alguém falhou um encontro por estar à espera do comboio na paragem do autocarro.
E enquanto escrevo quase me sinto a encolher os ombros também perante uma sombra que se desenha no horizonte. Mas sei que não vale a pena escondermo-nos debaixo da cama, porque é aí que vivem os monstros.
É de peito de aberto que temos de ir, com uma voz que não se cala sobre a esperança, a liberdade, o sonho que não se espera, mas se constrói com alegria e imaginação. O passado é um lugar que não nos serve. O amanhã constrói-se todos os dias. E até as ondas mais altas acabam por se desfazer em espuma quando têm uma rocha pela frente. Nós seremos a rocha. Com um brilhozinho nos olhos, como na cantiga.
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