Em Portugal, referendámos a despenalização da interrupção voluntária da gravidez em 2007. Passaram 17 anos e considera-se que este foi um dos passos mais importantes na promoção da liberdade de escolha e da saúde da mulher. Já nem sequer é um tema que queiramos discutir em praça pública – exceto quando entrevistadores continuam a questionar políticos sobre as suas convicções pessoais, como se isso fosse mudar alguma coisa na lei. Que não vai. Porque, embora haja forças conservadoras a desejarem palco, dificilmente Portugal voltará sequer a querer pensar no assunto – nisso somos bons: está resolvido, siga a viagem. E para aqueles que são contra a interrupção voluntária da gravidez (IVG), com toda a legitimidade que a democracia e a liberdade lhes conferem, também não há grande tema, porque ninguém obriga as pessoas a abortar.
Dito isto, olhemos para o que se passa do outro lado do Atlântico, onde uma nova discussão sobre a IVG levou – como não poderia deixar de ser – milhares de pessoas às ruas do Rio de Janeiro, neste domingo. Em resumo, o que aconteceu foi o seguinte: o Projeto de Lei 1904/24, que foi assinado por 33 deputados brasileiros, equipara o aborto realizado após as 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples. E isto passaria assim a ser válido até para os casos em que o procedimento já está previsto na lei, como numa gravidez decorrente de violação. A proposta, que está atualmente em análise na Câmara dos Deputados, altera o Código Penal Brasileiro, que atualmente não criminaliza o aborto em caso de violação nem prevê qualquer restrição de tempo de gestação para o procedimento nesse caso. No mesmo sentido, a lei brasileira admite a realização de uma IVG em caso de perigo de vida para a mãe e em caso de malformação grave do feto. Se o projeto de lei for aprovado pelos parlamentares, o aborto realizado após as 22 semanas de gestação será punido com pena de prisão efetiva, que pode ir de seis a 20 anos. Atualmente a lei brasileira prevê a prisão “de um a três anos para a mulher que aborta; a reclusão de um a quatro anos para o médico ou outra pessoa que provoque aborto com o consentimento da gestante; e reclusão de três a dez anos para quem provoque aborto sem o consentimento da gestante”, informa-nos o portal oficial da Câmara dos Deputados. Ora, isto significa que se aqueles 33 deputados levarem a sua avante, uma mulher que recorre à IVG pode incorrer numa pena semelhante à prevista em casos de homicídio simples. E superior à prevista em caso de violação – fascinante, não é? Portanto, se uma mulher brasileira for violada, e se uma gravidez resultar desse crime, ela pode ir para a prisão durante mais tempo do que o criminoso que a violou, no caso de não querer seguir com a gestação.
Quando li as primeiras notícias sobre o assunto, achei, claramente, que não estava a compreender o que se discutia naquele órgão legislativo. Porque não me parece possível que em pleno século XXI continuemos a proteger criminosos, colocando as mulheres em lugares de ainda maior vulnerabilidade. A bandeira “pró-vida” tem servido para muita maluquice, mas não pode continuar a proteger quem só defende determinadas vidas. E continuar a vitimizar as mulheres num retrocesso brutal do que seria a sua dignidade. Eu não quero acreditar que uma coisa deste género pudesse acontecer em Portugal. Mas a verdade é que também não diria que ia acontecer no Brasil, e aqui estamos. No ano da graça de 2024. Se isto não é uma distopia total, não sei o que lhe chamar.
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