Assistir, em 2024, à apresentação da obra “devíamos voltar ao conceito de família de 24 de abril de 1974” encheu o espaço público de anedotas e discussões. Nos escritórios e nos cafés, muitas mulheres ouviram, em tom de brincadeira: “Meninas, para a cozinha!” Para algumas de nós, que crescemos com a imagem da mãe, das avós e das bisavós encostadas ao fogão ou à tábua de passar a ferro, a vida até pode ser uma corrida mais ou menos parecida – com a dupla jornada de trabalho, do emprego para a escola dos miúdos e daí para os tachos do jantar –, mas as possibilidades, as escolhas, o mundo que abrimos, as liberdades que conquistámos… Tudo é incomparável.
O que andámos para aqui chegar!
Terá sido esse caminho a assustar os “donos dos ovos”, feliz expressão de uma canção de Sérgio Godinho: “O galo é o dono da casa/A galinha, da cozinha/Ou se porta direitinha/Ou apanha com a asa”.
Para eles, tudo é um susto. Mete-lhes medo o amor entre dois homens ou duas mulheres e o amor que possam dar a uma criança, bem como as decisões que cada um entenda tomar sobre o seu corpo, o seu género e a sua identidade; apelidam de “ideologia” o ensino da cidadania e da igualdade, dos direitos humanos, mas ignoram a violência diária contra as meninas nos recreios das escolas – públicas e privadas –, porque as “ideologias” antigas não desaparecem por magia.
Chamam “cultura de morte” a certos aspetos da vida privada, como se o mundo não estivesse a desabar à nossa volta sob os horrores da guerra. A expressão tem tido o seu uso dentro da Igreja Católica, de facto, designando o aborto e a eutanásia, mas não deixa de parecer algo deslocada quando pensamos na ameaça nuclear que paira.
Está por demais demonstrado que é nestes “tempos sombrios” que o medo avança, as pessoas sentem-se sem chão e agarram-se a qualquer boia – para alguns, é a boia do seu imenso privilégio, onde cresceram e se sentem seguros, pouco importando os custos que isso possa implicar para os outros.
Os custos de voltar a criminalizar o aborto, quando os números mostram que a sua legalização salvou a vida a tantas mulheres. Ou voltar a dificultar os processos de divórcio, como defendem, num país como o nosso, onde a violência doméstica é um flagelo. Em 2023, 17 mulheres, três homens e duas meninas foram assassinados em contexto de violência doméstica. E mesmo que não fosse um flagelo, quem pode obrigar o outro a amar?
E quais seriam os custos sociais de voltar a encerrar tanta inteligência num fogão e numa cama? Pode ser difícil imaginar, e talvez valha a pena voltar a pegar na obra-prima de Margaret Atwood ou rever a série The Handmaid’s Tale. Há sempre quem sonhe com as distopias.
Para André Ventura, o livro Identidade e Família, ao qual Pedro Passos Coelho se associou, tem um “conteúdo mais condizente com o programa do Chega do que com o programa da AD”. Percebe-se a intenção de colar o seu partido ao tema que dominou a semana, mas o acontecimento – Passos Coelho a apresentar uma obra com estes conceitos – é muito mais significativo: o antigo primeiro-ministro não permanece uma “ameaça” apenas para Luís Montenegro; o seu eventual regresso poderia também ser uma má notícia para André Ventura.
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