1. Domingo, 1 de janeiro de 2023, posse do Presidente Lula da Silva, um dia memorável. Emocionante, e com momentos comoventes, não só para muitos milhões de brasileiros como para aqueles que sem o serem amam o Brasil. A começar pelos que não só, mas também, como portugueses se sentem mais ou menos brasileiros. Como é o meu caso, e no meu caso mais…
Contra ventos e marés, apesar de tantas falhas e incompreensões, chama-se a isto a “fraternidade luso-brasileira”. Apesar das violências, correntes durante séculos, com abusos, erros, desvios, não há nada de que nos possamos orgulhar mais, na História de Portugal, do que do Brasil. “Cais do lado de lá do nosso destino”, como escreveu Miguel Torga.
2. No único “grupo” do WhatsApp que frequento, brasileiro e no qual participam muitas figuras destacadas do Brasil, durante o dia foram-se sucedendo os testemunhos dos que confessavam não haver conseguido conter as lágrimas, sobretudo na marcante e tocante intervenção de Lula após lhe ser colocada a faixa de Presidente. Felizmente não pelo seu inqualificável antecessor, que dois dias antes “fugiu” para os EUA, mas por uma mulher, mãe de sete filhos, catadora de lixo há 19 anos. Numa opção extremamente significativa e simbólica, todo o Brasil, na sua enorme diversidade, representado por alguns dos menos “visíveis” e mais necessitados de atenção: além da referida catadora, com ela partilhando o palco e o gesto, um jovem com paralisia cerebral, um metalúrgico, um professor, o famoso cacique kaiapó Raonio Metuktire, um menino negro de 10 anos.
3. Durante horas vi em direto, através da Globo News, tudo o que havia para ver, até à posse dos ministros e assinatura das primeiras importantes medidas do novo governo. No âmbito da defesa do ambiente, da cidadania, dos direitos mais “atacados” na era Bolsonaro, na revogação da legislação sobre o comércio de armas: o que é preciso são livros, não armas, disse Lula. E foi naquela intervenção, lembrando o título do grande romance de meu compadre João Ubaldo, que mais vezes disse de mim para mim o que acabaria de ser a “proclamação” final do novo Presidente: Viva o Povo Brasileiro.
Na circunstância, Lula falou da forma mais clara, forte, expressiva – emocionada e emocionante, repito. Desde logo, traçando as suas principais prioridades, como o combate à fome, à miséria, às terríveis desigualdades, que nos últimos quatro anos se acentuaram. Sem esquecer o apelo à “pacificação” do país, a um clima de tolerância e diálogo destruído pelo ódio que o bolsonarismo semeou, incomparavelmente mais e pior do que fizera antes certo “petismo”. Mas também sem omitir que os responsáveis pelos crimes cometidos durante o consulado de Bolsonaro não podem ficar impunes.
4. E não terá sido por acaso que Lula fez o seu discurso mais marcante não no Congresso mas falando para as duas a três centenas de milhares de cidadãos que se reuniram em Brasília para festejar o regresso do país ao caminho da democracia e da decência, da esperança em vez do medo. O discurso no Congresso apresentou de forma mais institucional, e de algum modo mais “dura”, o programa de governo, sem tal explícito apelo, que aliás penso devia ter feito e foi nota dominante até nas suas palavras na noite da vitória eleitoral. Muitos, porventura a maioria, dos congressistas não terão gostado do que ouviram – mas a cerimónia foi muito representativa da nova posição do Brasil a nível global e do apoio que internacionalmente Lula tem.
5. Nesta coluna, a 27 de outubro e a 10 de novembro, referi, de forma sucinta, alguns dos graves problemas do sistema político brasileiro e dos enormes obstáculos que o novo Presidente terá de ultrapassar. O que já aconteceu e poderá vir a ser pior. O Governo passou a ter 37 ministros (antes eram 23), em parte por absoluta necessidade ou com justificação bastante, noutra parte, creio, para facilitar os entendimentos indispensáveis para lhe garantir o mínimo de sustentabilidade parlamentar. Lula teve de “negociar” muito, há nove partidos, muito diversos, com representação no Governo – três deles, do “centrão”, com três pastas, e com duas a União Brasil, a que até pertence Sérgio Moro, agora senador e sempre contra Lula.
À MARGEM
As relações com Portugal
Foi preocupante que só na última rodada de anúncio dos ministros aparecessem Marina Silva e Simone Tebet, duas figuras e dois “sinais” da maior importância no Governo. Mas lá estão, com outros melhores (a maioria) ou piores. E entre os melhores alguns pouco conhecidos fora de círculos estritos, como o excelente Sílvio Almeida, titular da nova pasta dos Direitos Humanos.
Assinalável, com muita satisfação, foi a forma como Lula (e o presidente do Senado que, entre tantos chefes de Estado, só a ele se referiu) distinguiu o Presidente Marcelo. As relações Brasil-Portugal têm agora condições como nunca para se aprofundarem e desenvolverem. E Lula estará entre nós de 22 a (não por acaso) 25 de Abril, para uma cimeira bilateral que com Bolsonaro nunca ocorreu e para entregar o Prémio Camões a Chico Buarque.
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