Na semana passada, participei, primeiro em Lisboa, depois no Porto, em dois debates sobre os problemas que se colocam hoje às nossas maiores cidades. Ressalvadas as diferenças, encontrei no Porto o mesmo tipo de preocupações que se agitaram no encontro de Lisboa. Talvez não pudesse ser de outra maneira: Lisboa e Porto são as duas únicas metrópoles existentes no território nacional; os problemas de periferização do centro urbano tradicional são comuns a uma e outra; e as questões sociais e de gestão territorial que resultam desse processo são em tudo semelhantes.
O maior problema das nossas duas maiores cidades parece-me hoje, claramente, o da desertificação de amplas zonas do seu património construído, resultante da diminuição de população residente no núcleo urbano tradicional. Em cidades que, como Lisboa, perdem habitantes ao ritmo de 100 000 por década, a primeira atitude cultural é tentar perceber por que razão elas deixaram de ser atractivas; a segunda é tentar inverter esta tendência.
As políticas prioritárias para a cidade têm que responder à degradação visível das condições de habitabilidade, com a indispensável melhoria das condições de circulação, automóvel e pedonal, com a renovação dos equipamentos culturais mais do que com o seu crescimento, com a reinvenção de espaços públicos e seu povoamento. Sobretudo, com medidas legislativas e políticas de efectiva atracção de residentes, o que só poderá ser atingido através da superação da passividade de imagem soberanamente cultivada durante as últimas décadas.
Já aqui o escrevi: pouco ou nada fazendo para se fazerem notadas pelos outros (para se «venderem»), Lisboa e o Porto assemelham-se àquelas mulheres que foram lindíssimas na juventude e pensam que na idade matura podem continuar a viver à custa da sua glória passada. À medida que se urbanizavam e iam tornando mais integradas na lógica do consumo urbano, as duas cidades foram perdendo população e massa crítica. Envelheceram e tornaram-se velhas. E o êxodo da população jovem é o libelo acusatório de cidades incapazes de contrariar os factores de desagregação provocados por uma política de solos e de habitação que foi errática ou ausente, quando não pura e simplesmente criminosa.
Urgente, verdadeiramente, é reflectir sobre os problemas de Coesão e Identidade urbana (factores de fragmentação, composição da população por lugar de origem, alterações sociais e etárias nas diversas zonas, definição de invariáveis locais que definem a identidade – de bairro, de zona, de interesses); e de Integração social, vista esta não apenas na perspectiva do combate à exclusão, mas na criação de uma plataforma de integração – uma espécie de «compromisso das metrópoles» – que se refere à população idosa (crescente), às minorias étnicas e religiosas (cada vez mais presentes), aos toxicodependentes (uma bolha de ar que se desloca), aos sem-abrigo (estatuto cómodo pelo qual se finge estar a proteger a liberdade individual). O aumento dos factores de exclusão social, o crescimento das minorias, a indiferença ou a resignação em relação à marginalidade, fizeram com que as cidades se desintegrassem nos seus valores fundamentais de solidariedade e bem-estar. Um problema cultural de primeiro plano é tentar encontrar fórmulas de integração das minorias étnicas e nacionais, de forma a que elas ajudem a forjar uma nova identidade cosmopolita.
Por isso, não percebo bem para que é que alguns querem construir mais equipamentos culturais; a questão está em saber como é que os que existem projectam abrir–se aos novos segmentos da procura, às novas culturas e às novas sensibilidades, aos novos públicos e às novas tendências. À medida que iam envelhecendo, Lisboa e o Porto foram-se tornando mais descuidadas. Caem prédios, abrem brechas monumentos, quarteirões inteiros estão votados ao abandono. Investe-se nas nossas cidades menos, muito menos, em reabilitação de edifícios do que nas outras grandes cidades europeias. Deixa-se cair, para se construir de novo; as nossas cidades são, verdadeiramente, capitais do desperdício urbano. Uma política voltada para o repovoamento tem de ser, em primeira linha, uma política empenhada na recuperação e modernização do património construído da cidade. Uma simples medida seria condicionar o licenciamento de um metro quadrado de construção nova apenas quando estives-sem assegurados dois metros quadrados de reabilitação de edifícios já construídos.
Combater a exclusão e o envelhecimento, arejar e rejuvenescer, recriar e recuperar, pôr um travão à experimentação sem perspectivas, conservar apenas o que ainda está vivo, tudo isto são atitudes culturais. É esta uma visão «derrotista» da cidade, como me dizia uma deputada municipal no fim do debate de Lisboa? De forma nenhuma: é uma visão optimista, de quem acredita que o destino das cidades não é uma fatalidade, mas qualquer coisa que pode ser construída pelo esforço dos seus habitantes e responsáveis.
Crónica de António Mega Ferreira de 10 de junho de 2005
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