Por estes dias, o Governo fez reféns um conjunto de pessoas com uma vida, já de si, miserável para disfarçar a incompetência e o racismo de Estado que lhes dispensou, durante mais de uma década, porque pode contar sempre e muito com a nossa apatia.
Falo, claro, dos imigrantes que trabalham na agricultura, em condições que nenhum europeu aceita e, em particular, dos que foram apanhados na cerca sanitária de Odemira. Os que uma dita secretária de Estado da Integração e Migrações declarou, no ano passado, serem “um exemplo da… integração de migrantes”.
Admito que para alguns, mais distraídos, seja uma surpresa que tantas pessoas sejam vítimas de uma exploração que já dávamos por extinta, pagando para trabalhar a intermediários sem escrúpulos e viver em condições iguais ou piores às que nos arrepiavam nos relatos portugueses de França, nos anos 60 e 70.
Já para o Governo não há surpresas. Coerente com a irrelevância da senhora secretária, já tinha permitido por despacho que os migrantes vivessem nos contentores que, agora, acha degradantes. E, quando a pandemia chegou, tratou-se da situação com menos cuidado do que nos lares de idosos. O que aconteceu estava mais do que anunciado.
Em Odemira, a Covid-19 e a televisão destaparam a realidade, e o Governo destacou-se, mais uma vez, pelo inenarrável dr. Cabrita, a quem sobra em nonsense o que falta no resto tudo e que, inevitavelmente, acabou por esbarrar em si próprio. Desta vez, achou uns “capitalistas” à mão de semear para construir uma narrativa soez de folclórica luta de classes, usando – repito sem qualquer respeito – os que antes não tinha protegido.
Daí a invadir o agora bem conhecido empreendimento Zmar a meio da noite, com polícia e cães, foi um esfregar de olhos que culminou num descrédito levado ao papel por uma requisição civil às três pancadas só para animar a internet de Lisboa que o queria ver a ocupar “aquela coisa dos fachos”. O descrédito só não foi absoluto porque o outro lado respondeu à tontaria com a mesma moeda.
Perante tanta crueldade e tanto disparate, a direita, em vez de aproveitar o óbvio desnorte do Governo para se atirar ao que interessa – com que trabalhadores e com que água pode esta agricultura ser desenvolvida? –, entreteve-se a responder, mordendo o engodo do ministro mais inábil de serviço. É obra.
Para alguém de direita, a terra, a água e o trabalho são coisas simples de perceber. Não se prestam a grandes equívocos.
E, no entanto, a propósito do famoso Zmar houve quem chegasse a clamar a maior ofensiva contra os direitos desde o PREC. Haja pachorra! Num País de pequenos terratenentes, aforradores pelo imobiliário adquirido com suor, a direita tem obviamente de defender a propriedade para defender a liberdade. Mas será que o exemplo da “propriedade” que a direita protege é a chico-espertice de um parque de campismo que ganhou raízes na reserva ecológica para fazer propriedade, onde, sem a manigância, ela nunca existiria? Haja respeito por quem, tendo pouco, e são muitos, teve de defender-se em 75 das verdadeiras ocupações…
À parte esta tolice, ainda houve na direita também quem visse no episódio um ataque à agricultura… pois, a mim, a única novidade que me assolapou foi mesmo a eventualidade da seca do Mira que rega o litoral do Alentejo, e a dúvida que se me fica é mesmo sobre a sustentabilidade daquilo tudo. Quem guarda, afinal, a água de todos por ali? O que se faz quando/se acabar? Talvez valesse a pena pensar um bocadinho nisso, porque o Alqueva ainda fica longe.
Que oportunidade se perdeu à direita para dar uma lição de humanidade à esquerda que tanto abandonou estas pessoas… Que sentido faz negar guarida temporária e, aliás, remunerada, em casas turísticas vazias, a pessoas em tal estado de necessidade? A direita de que eu faço parte seguramente não se revê no egoísmo e na falta de humanidade que por ali se viram.
Mas, isso, vencer pela superioridade de saber como fazer – porque a convicção e o caminho são outros –, em vez de escolher um dos lados na história que a televisão mostra, seria esperar da oposição um esforço que não tem sido possível. É pena. Para todos, menos para o PS.
(Opinião publicada na VISÃO 1471 de 13 de maio)