Elas é que se chegam à frente. Também existem pais, mas são sobretudo as mães que estão lá. São as primeiras a levar com o choque, a serem confrontadas, as primeiras a dar colo. E a cara. Nunca mais me vou esquecer, foi numa manhã de janeiro e aquela mulher entrou na sala como quem vai mover uma montanha. Sabia tudo o que queria dizer, já tinha contado a história deles várias vezes, a médicos, professores, psicólogos, familiares e até desconhecidos como eu.
Com uma frontalidade que nos desfaz em segundos, disse que o filho estava preso num corpo de rapariga, mas se sentia e vivia como um rapaz. Aliás, aos nossos olhos era um rapaz. Relatou com pormenor todo o tortuoso caminho até ali. Falou do direito à felicidade do filho, das suas angústias e dos seus sonhos. Do que significava mostrar o passe de transportes públicos em que constava um nome feminino que não coincidia com a sua identidade de género masculino. Esta mãe contou com o apoio da Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual (AMPLOS), feita de gente de muita coragem e resiliência.
Em Portugal, até 2011, a mudança de sexo e de nome próprio para efeitos de registo civil apenas era possível através de um processo judicial, no qual as pessoas eram obrigadas a pôr o Estado português em tribunal, alegando um erro na atribuição e registo da sua identidade. Com a aprovação da Lei nº 7/2011, o processo de reconhecimento legal da identidade de género passou a ter a natureza de um ato administrativo.
Em 2018, o testemunho de jovens e mães viria a ser decisivo no âmbito de novo processo legislativo que consagrou o direito à mudança do nome e género no cartão de cidadão para jovens a partir dos 16 anos, dispensando também o diagnóstico de perturbação da identidade de género a realização de um ato civil. A separação entre o domínio clínico e o legal foi muito importante. A lei passou também a proibir cirurgias que não sejam medicamente necessárias a crianças ou a bebés intersexo, ancorando-se em recomendações internacionais, prevendo que apenas se devem realizar, de imediato, as intervenções cirúrgicas ou farmacológicas necessárias para eliminar riscos para a saúde, deixando as outras para o momento em que esteja definida a identidade de género, com a autorização dos representantes legais.
O seu filho mudaria o nome e o género no cartão de cidadão; outras batalhas trava agora, como a capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde. Passados dois anos, ele e outros 32 menores venceram barreiras e mudaram o nome. Pode parecer pouco, mas “mudar o nome é uma grande mudança, principalmente numa fase muito importante da adolescência. E facilita em tudo. Posso ir a um serviço entregar documentos sem ficar à espera que a pessoa diga alguma coisa por ter um nome feminino, mas uma imagem e voz masculinas. Posso inscrever-me na faculdade sem ter de explicar nada a ninguém”. É muito.
O direito à autodeterminação da identidade e expressão de género e à proteção das características sexuais é o reconhecimento de um direito fundamental. Parece pouco? Parece complicado? Não é. Chama-se dignidade.
(Opinião publicada na VISÃO 1432 de 13 de agosto)