Saiu de casa a 9 de março e ainda não voltou. Roupa lavada e comida feita para aquela semana, com cara séria repetiu–lhes as horas de deitar e abraçou-os. Mais uma semana de trabalho que começava. Nunca imaginou o que teria pela frente. Gosta do que faz, cuidar dos que ali ficam, tantos esquecidos, olhares vagos e corpos frágeis à espera de um carinho, de um momento de atenção. Sente na sua saúde a dureza do que faz, uma hérnia que a consome todos os minutos, os braços que faltam para tanto trabalho, a tristeza de lidar com a solidão e a morte diariamente. É o que se tem de mais certo quando se trabalha num lar, isso e um calendário que não conhece fins de semana nem feriados, nem dias de aniversário dos filhos e festas na escola; trabalha 365 dias por ano em troca de um salário que pouco passa dos 600 euros. Gosta do que faz, mas teve medo, nunca imaginou que seriam 52 dias até voltar a abraçar os filhos.
Por cá, quem garante a sobrevivência dos outros é obrigado a sobreviver com salários de míngua, horários que os corroem por dentro e por fora, contratos de trabalho sempre com prazo de validade. Trabalhadores da construção civil, águas e saneamento, limpeza e vigilância, agricultura, supermercados, cantinas e lares, carteiros e distribuidores, e tantas mulheres e homens por esse País fora que continuam a garantir o nosso quotidiano mas não são reconhecidos por isso. E não se trata de agradecimento, mas sim de condições de vida. Não sabem o que é um subsídio de turno, nunca lhes foi pago. Não sabem o que é um subsídio de risco, nunca o receberam. Mas no local de trabalho estão expostos a isso, ao risco.
Na legislação de trabalho do setor público, está prevista, há mais de 20 anos, a “atribuição dos suplementos de risco, penosidade e insalubridade aos trabalhadores”, mas não são pagos. No setor privado, existe apenas na contratação coletiva, que ainda não caducou, abrangendo cada vez menos trabalhadores, e foi com luta e greves que o conquistaram. Das várias vezes que o PCP propôs o seu pagamento a todos os que se encontravam nessa situação, foi chumbado por PS, PSD e CDS. Igual destino para o subsídio de turno.
Os bombeiros, coveiros, forças e serviços de segurança, auxiliares de ação médica, enfermeiros, técnicos de diagnóstico e terapêutica, médicos e outros profissionais de saúde merecem todas as palmas, mas merecem sobretudo carreiras valorizadas e direitos respeitados. Quando comparado com outros países europeus, os profissionais do SNS trabalham mais horas e recebem menos, têm menos direitos. Lá fora, são heróis; cá dentro, ouvem do Governo que “não é momento para se pensar em compensações ou subsídio de risco”. Se não é agora, é quando? O que seria de nós agora sem eles, expostos ao risco? É mais que tempo de os valorizar, e já vai atrasado. No setor público e no privado, a todos.
Esta pandemia não pode adiar, só tornar mais evidente quem são os imprescindíveis. E o tempo para os valorizar é este.
(Opinião publicada na VISÃO 1417 de 30 de abril)