Entre tudo o que já foi dito e escrito sobre esta vaga da Covid-19, que está a enviar mais de mil milhões de pessoas para o isolamento (depois de já ter feito o mesmo, numa primeira fase, a quase 800 milhões de pessoas na China), há uma frase que não me saiu da cabeça. Foi dita pelo virologista David Ho – o Homem do Ano para a revista Time, em 1996, pela sua descoberta do cocktail de medicamentos que, na prática, tornou a sida uma doença crónica –, ao ser entrevistado por Walter Isaacson, o antigo diretor daquela newsmagazine que, entretanto, se especializou na escrita de biografias, desde a de Steve Jobs à de Leonardo da Vinci. A frase foi proferida há poucos dias, num programa da PBS, o canal público norte-americano, e, repito, não me sai da cabeça: “É indesculpável. Nós estivemos, durante seis semanas, a assistir ao combate da China a esta epidemia, sem nunca tomarmos real consciência de que podíamos ser os próximos a ser atingidos. Agora, andamos a brincar à apanhada com o vírus.”
Dita por outro qualquer e perante qualquer outro interlocutor, esta frase não teria a mesma importância e poderia até parecer mais uma boutade para chamar a atenção nas redes sociais. Não, aqui estamos em terreno de adultos, ambos com muitas provas dadas, e que agora se mostram unânimes a reconhecer o erro de análise em que todos caímos. De facto, aquilo que o cientista da Universidade de Columbia disse é a evidência… mais evidente (o pleonasmo é propositado): como é que foi possível que, depois de semanas e semanas a vermos a China a lutar contra o novo coronavírus, a decretar quarentenas em pleno Ano Novo lunar, a parar a economia e a erguer hospitais em tempo recorde, ninguém deste lado do mundo se tenha lembrado de que deveríamos estar preparados para enfrentar uma ameaça igual? Sem testes suficientes, sem máscaras nem equipamentos, sem planos de emergência adaptados aos mais diversos cenários, a realidade é a que ele descreve: andamos, às escuras, a brincar “à apanhada” ao vírus.
Já sabemos, também pela experiência chinesa, que a história é complexa. Além de combater o vírus, os governos vão precisar de, nos próximos tempos, injetar muito dinheiro para salvar a economia. E aí, nesse momento, já ninguém admite brincadeiras.