Em qualquer democracia madura, os titulares de cargos políticos podem e devem ser escrutinados com base no conjunto de ideias e propostas com que se apresentam aos eleitores. Essa máxima é aplicável aos que cá andam há muito tempo, isto é, aos representantes dos partidos que arquitetaram o edifício do poder no pós-25 de Abril e aos que, mais ou menos recentemente, passaram a ocupar o nosso espaço público.
No final da legislatura passada, metade do País rasgou as vestes, e bem, porque PSD e CDS sacrificaram o argumento das contas certas no altar da irresponsabilidade quando apareceram ao lado de BE e PCP a defender a contabilização integral do tempo de serviço dos professores. Rui Rio e Assunção Cristas esqueceram-se de que, em 2015, a coligação Portugal à Frente (encabeçada por Pedro Passos Coelho e Paulo Portas) era frugal naquilo que oferecia.
Num capítulo dedicado à política remuneratória no Estado, advogava apenas “(…) a renovação dos quadros da Administração Pública, aumentando progressivamente o nível de qualificação e capacitação para os novos desafios de uma administração moderna e orientada para os cidadãos e as empresas, será acompanhada pelo início do processo de descongelamento das promoções e progressões nas carreiras no ano de 2018, devendo o ritmo desse processo ter em conta a disponibilidade orçamental e respeitar o objetivo de conter a massa salarial agregada”.
Já neste mandato, após intenso escrutínio da comunicação social, o deputado único do Chega engavetou o manifesto com que apareceu nas legislativas e teve o seu momento Groucho Marx. Se as convicções e o programa eleitoral eram um embaraço, André Ventura acenou com outros. Afinal, tudo na vida, até mesmo retroativamente, é passível de ser mudado…
Acontece que a incoerência consome e desgasta. E, se servida em doses cavalares, também mata. O que nos conduz a Joacine Katar Moreira. Na quinta-feira, sem que fosse necessário o seu voto para que tudo ficasse na mesma, a deputada não-inscrita fez um frete ao PS: opôs-se à redução da taxa de IVA da eletricidade em nome da “estabilidade governativa”.
Num quadro de completa inconsistência Joacine foi consistente com os seus primeiros meses no hemiciclo: mandou às malvas, outra vez, aquilo para que fora mandatada. Dúvidas? Veja-se o que propunha o Livre, aquele partido – recordar-se-á a deputada? – pela qual foi eleita: “Reduzir o escalão do IVA de 23% para 6% em todos serviços essenciais de fornecimento de energia, mais concretamente na eletricidade e no gás (natural e engarrafado), para diminuir os encargos das famílias.”
Valha a verdade. Ao alívio da fatura da luz para os mais vulneráveis (num País em que ainda se morre devido ao mau aquecimento das casas) Joacine preferiu o calor e o aconchego de António Costa, que está disposto a encontrar as geometrias mais variáveis e improváveis para que não haja um curto-circuito político antes de lhe ser conveniente.
Ao contrário do que vociferou na manifestação de solidariedade com Cláudia Simões (num novo episódio de deslumbramento e egotismo), Joacine não nasceu para estar na Assembleia da República. Emergiu para se adaptar a qualquer grupeta lhe confira a sensação de poder. E não espantará, sequer, que a ativista anti-tudo deixe cair a sua agenda desconchavada, assente em paradoxos.
Primeiro paradoxo: a pessoa que mais se queixou de racismo e misoginia no Portugal contemporâneo foi a primeira negra cabeça de lista de um partido numas legislativas. Segundo paradoxo: a guardiã e porta-voz das minoriais esquecidas, que considerava “absolutamente revolucionário” não pertencer às elites de sempre, chegou a S. Bento com o voto das elites de sempre, ou seja, dos eleitores das freguesias mais prósperas e alfabetizadas de Lisboa. Terceiro paradoxo: a deputada que batia com as mãos no peito contra discriminações estruturais foi recebida com tolerância adicional e flexibilidade q.b. dos pares, dos serviços do Parlamento e dos media para que, sendo gaga, pudesse expressar-se sem constrangimentos temporais. Quarto paradoxo: assim que discordou politicamente das suas potenciais companheiras de luta feminista não teve qualquer pudor em reduzi-las à pejorativa condição de “mulherio” pertencente a outros partidos. Abel Matos Santos não faria melhor…
É assim a cabeça de Joacine. Um conflito permanente entre alguém que, não conseguindo viver como pensa, evita pensar em como vive. Ao mesmo tempo que vê um ato de amor no aumento do salário mínimo para 900 euros, sem ponderar eventuais consequências económicas da medida, não tem lampejos de consciência sobre os efeitos sociais de termos uma das mais elevadas taxas de IVA sobre a eletricidade e sobre o gás na Europa.
Joacine provavelmente verá ódio nestas linhas. O normal em alguém que se presume imperscrutável e que vive submerso em antinomias e maniqueísmos primários, que nem boa parte da esquerda identitária que a apoiou conseguirá subscrever.
Por isso, andou bem o Livre. Assumiu o erro de casting e procurou a redenção. Joacine, orfã de programa político e sem dizer ao que vem desde que rompeu com o antigo partido, limitou-se a pensar na sobrevivência. Acredito que tenha um longo caminho político pela frente – basta clamar pelas suas causas (algumas ininteligíveis) de segunda a quarta e arrumá-las a um canto na quinta ou na sexta-feira. O salto do regaço de Rui Tavares para o de António Costa será só uma questão de tempo. Assim queira o primeiro-ministro.