O Mustafa fez anos há uma semana e não disse nada a ninguém. Fez vinte e um, como eu, longe de casa e da família. Quando soube, fiz um desenho cheio de cores e dei-lhe um presente com graça. Mas já lá vamos. É esta a história de mais um menino sem voz, que a devia ter. Faço o favor de vos falar do seu sorriso.
Antes de ser refugiado, o meu amigo era um miúdo normal. Poderíamos ter sido colegas na universidade, estudado na mesma biblioteca e frequentado os mesmos bares. Só que, ao contrário de mim, criada na paz lisboeta, ele nasceu numa terra prestes a incendiar-se. Alepo, uma das cidades mais antigas do mundo, outrora cheia de História e de beleza, hoje cheia de medo e destroços.
Mustafa dividia o tempo entre a faculdade de engenharia e uma loja de roupa. O pai dele ganhava cada vez menos no trabalho, o seu salário decrescia ao sabor das taxas requeridas pelo “Estado Islâmico”, que agora controla a província. A mãe tinha de ficar em casa com um filho pequeno, cuja escola foi encerrada pelo novo governo. Mustafa tinha um grupo de amigos como o meu. Deixou para trás a namorada, a Amina, cujo nome escreve todos os dias no braço, integrado num símbolo de infinito, como quem espera que se torne permanente.
Um dia, a sua loja foi visitada por membros do “Estado Islâmico” que lhe exigiram cinquenta por cento de todas as vendas efetuadas. Mustafa explicou-lhes que dava de comer a quatro pessoas com o pouco que ganhava. “Nós havemos de voltar quando menos esperares”, ameaçaram à saída. No dia seguinte, na faculdade, voltaram a abordá-lo e repetiram a ameaça, mudando de termos: “Se matarmos a tua família, já não tens de lhes dar de comer”. A discussão subiu de tom e o meu amigo teve de fugir. Correu durante várias horas, sem destino, até o seu corpo ceder e cair de cansaço.
A noite caiu e ele voltou a casa, preparou a mochila, encerrou a loja e partiu para a Turquia. Trabalhou durante seis meses num restaurante. Descobriu que o patrão andava a enganar os clientes, tiveram uma grande discussão e acabou por se demitir. A carne vendida não era Halal. Os muçulmanos, para além de não comerem porco, só comem carne de vaca e aves se esta tiver a designação Halal, palavra em árabe que significa “permitido, autorizado”. Para que assim seja, implica que o animal seja degolado e sangrado, antes de a carne ser consumida. Halal é o oposto de Haraam, tudo aquilo que é pecado na religião muçulmana, tal como beber bebidas alcoólicas, roubo, corrupção, adultério, assassinato e outros comportamentos denunciados no Corão.
Quando lhe perguntei em que é que tinha trabalhado no segundo semestre que passou na Turquia, respondeu-me que não podia dizer. Passaram-me coisas bizarras pela cabeça, mas quando contei a história a um outro refugiado muçulmano, este disse-me que provavelmente Mustafa vendeu álcool, comportamento que também é Haraam, sendo por isso um trabalho bem pago fora das grandes cidades turcas, e por isso é que ele não me quis contar. Fico sem saber.
Ao fim de um ano, reuniu o dinheiro necessário para vir para a Europa e chegou a Bruxelas em agosto. Todas as manhãs tem aulas de francês e à tarde vem ajudar como tradutor no campo de refugiados.
Eu e o Mustafa trabalhamos lado a lado na receção do Hall Maximilian. É um rapaz doce, de olhos azuis bonitos e profundos, um nariz comprido e uma pele muito branca com algumas borbulhas de adolescente. Gostava de mostrar a sua cara, mas tenho medo de o pôr em perigo. Desfoco a fotografia e deixo o seu grande sorriso.
Sempre em tom de brincadeira, disputamos o banco que está atrás do balcão, todos os dias ele me diz “Sai daqui, este é o meu sítio!”, eu respondo-lhe o mesmo e, enquanto não temos trabalho para fazer, ficamos nesta conversa, a rir da parvoíce e a ver passar o tempo. Ele aprendeu a dizer “sai fora” com uma voluntária brasileira e eu aprendi “atlabara”, que quer dizer o mesmo em árabe. Quando descobri que era o seu aniversário, resolvi conceder-lhe o tão disputado assento. Escrevi um papel com o seu nome e colei-o na parede com uma seta. “Hoje este é o teu sítio, só porque fizeste anos e não disseste nada”, disse-lhe, “mas amanhã acabou-se, não te habitues”, ri-me. “Obrigado Adriana, sai fora”, respondeu-me.
De vez em quando, o Mustafa também aparece triste. Tem saudades de casa e da família, da Amina e dos seus amigos. Está frustrado e cansado de esperar, mas sorri a maior parte do tempo. No meio da tristeza, os sorrisos valem ouro e já tive vontade de lhe agradecer pelo seu. A brincadeira com que nos entretemos é parva, sei que teria dificuldade em achar-lhe graça noutro contexto, mas a necessidade de distração e descontração é tanta, que dou por mim a repetir a mesma todos os dias.
Espero nunca deixar de me rir e fazer rir. Enquanto assim for, vamos ser todos mais fortes. Aquilo que acontece aqui, cá ficará, a repetição e os conteúdos pouco importam, importante é a intenção e o resultado final: a alegria na espera e a esperança num futuro ainda mais sorridente.