Sábado, 14 de Novembro, foi um dia triste no centro de refugiados de Bruxelas. Quero com isto dizer que os dias costumam passar-se com alguns momentos de tristeza e revolta, mas sempre com força, esperança e sorrisos, boas energias que se espalham por quem ocupa os espaços e passeia pelos corredores, num contágio positivo e necessário. Grande parte dos voluntários são também refugiados, que se ocupam de motivar aqueles que acabam de chegar com conselhos e palavras de conforto. Não percebo o que dizem, falam em árabe, mas sinto a ternura nas suas vozes. É uma das coisas que mais me comove no dia a dia.
Temos música e alegria, dança e cantoria, desafinos e desatinos, jogos, teatro e cinema. Há crianças que correm, intercâmbios linguísticos que provocam grandes gargalhadas, private jokes como em todo o lado, grupos de amigos e animação. Já o disse e repito: somos uma grande família. Quando alguém está mais em baixo, logo à sua volta se reúne uma equipa de animadores, com a única missão de subir a moral e promover a serenidade. Tudo se há de resolver, é a frase mais batida.
Na sequência dos atentados de sexta-feira, em Paris, uma onda de solidariedade inundou a Europa e o mundo. O Hall Maximilian não foi exceção. Se a alegria é contagiante, a tristeza não o é menos. E neste dia, mais do que nunca, pude senti-la no ar. O que mais ouvi dizer, com alguma revolta que é natural, foi que as vidas na Síria tinham menos valor que em França. Apesar de compreender a dor de todos os europeus, não só pela proximidade, como pela “falta de hábito” deste tipo de violência, não posso deixar de concordar que é injusto, como diz um ou outro dos que trabalham comigo. O que aconteceu em Paris, ocorre diariamente nas cidades sírias e iraquianas. Há anos. E, por isso, hoje estes meus amigos compreendem, melhor que eu, a dor das famílias francesas.
De um modo geral, no Hall Maximilian estávamos todos de luto. Os refugiados, principalmente os mais novos e informados, previam um agravamento da islamofobia na Europa e aqui em Bruxelas. Muitos tiveram a preocupação de me vir dizer: “Eu sou muçulmano, mas sou pela paz. E estamos tão tristes como tu pelo que aconteceu “. Adorava que não fosse necessário ter de ouvir isto, não ter de lhes dizer que não faço esse tipo de julgamento. Adorava que eles soubessem que a diferença é clara, pelo menos na minha cabeça.
Todos nós conhecemos alguém que vive ou esteve em Paris, Londres, Madrid. Isso toca-nos de forma diferente, é normal, não acho que seja hipocrisia, é humano. Eu agora conheço pessoas de várias cidades sírias e iraquianas vítimas do Estado Islâmico, palestinianos que viveram o terror em Gaza, afegãos e outros de tantos lados do mundo, onde o medo e a violência imperam. Nunca mais vou ler notícias de longe com a mesma ligeireza.
No Facebook pude sentir, principalmente, a ansiedade e o choque, para além do medo – objetivos principais dos atores do terrorismo. As pessoas querem dar opiniões, rapidamente, sejam elas quais forem, querem ter uma palavra a dizer. A reflexão é importante e foi esse o meu exercício de domingo, com gripe, em casa.
Concluo que é preciso, antes de mais, ter calma. Unirmo-nos numa solidariedade que pode apresentar diversas formas. Não precisamos todos de rezar, de colocar bandeiras francesas, de pedir ao mundo que não generalize, de chorar da mesma forma os atentados de quinta-feira no Líbano, nem de criticar quem faz assim ou assado. Só precisamos de ser tolerantes e de valorizar o ato solidário, seja ele qual for. Precisamos de respeitar as manifestações dos outros, contrariar o medo e o terror, sentir que estamos juntos pela paz e pela harmonia. Que não vamos ceder aos objetivos dos que fazem a guerra desta forma.
O “Estado Islâmico” também tem interesse em virar as atenções para a Europa, enquanto espalha o terror por outros lados. Agrada-lhe que os refugiados sejam culpabilizados e, assim, castigá-los por terem fugido. Interessa-lhe que a Europa feche as portas às sua vítimas em fuga para que estas parem de abandonar o país. Precisa de fazer crescer o ódio aos muçulmanos para ter mais gente a juntar-se à sua causa. Precisa de medo e de que comecemos a atacar-nos uns aos outros. O caos é o melhor campo de batalha.
É preciso que seja claro que o “Estado Islâmico” também persegue os que agora são refugiados. É deste terror que eles fogem, é exatamente por isso que aqui estão. Muitos são muçulmanos, tal como há quem seja cristão ou budista. A paz e a guerra são praticadas em todas as religiões. Porque as religiões são feitas por homens, a confusão de generalizar nem se coloca.
Todos os dias me cruzo com pessoas que conseguiram escapar ao tormento diário do ISIS ou Daesh, do “Estado Islâmico”. E o mais grave é que quem parte nunca mais pode voltar. Fugir é crime e a pena é a mais elevada.
Houve vítimas do terrorismo em Paris, há vítimas do terrorismo aqui ao meu lado. O meu amigo Ahmed partiu só, em desespero, depois de ser alvejado numa perna, na esperança de que a mulher e os dois filhos viessem logo ter com ele a Bruxelas. Foram apanhados no embarque e estão proibidos de voltar a entrar na Turquia. Se Ahmed voltar, não sobrevive.
Geil viu o tio morrer com um tiro na testa, o seu pai sobreviveu a dois disparos e conseguiram fugir. Kha correu sem destino durante várias horas, até cair de cansaço, depois de uma discussão com membros do ISIS, que lhe exigiam metade dos lucros da sua loja. Al viu morrer o irmão gémeo. Fra chegou ao trabalho e encontrou a empresa da família em chamas e destroços.
Qiri não pôde acabar o curso porque a sua faculdade foi tomada pelo ISIS. Se fumares na rua, eles cortam-te os dedos. “Gostas de filmes de terror? É mais ou menos isso”, diz-me. O pai do Oda está ainda a ser ameaçado, porque o filho fugiu para a Europa e não se juntou a eles para combater.
O senhor de quem não conheço o nome foi apanhado duas vezes a tentar fugir, partiram-lhe uma perna de cada vez, mesmo assim arriscou a terceira e está aqui com a família. Quando dizem a palavra Daesh, todos baixam o tom de voz. Não tiveram escolha. Eles têm medo, mas um dia querem voltar, quando tudo acabar. Quando tudo se resolver.
Quanto àqueles que defendem que devemos fechar as portas aos refugiados por, entre eles, poder haver terroristas infiltrados, depois de todas as histórias que ouvi, acredito, ainda com mais certeza, que pouca gente se submeteria a uma travessia tão perigosa, senão em caso de desespero.
Temos assistido a atentados terroristas postos em prática por atores europeus, dos quais não foram exceção estes últimos, em Paris. Os terroristas ou já cá estão ou vêm de avião, confortavelmente, não vão arriscar uma morte sem objetivo e sem provocar a de outros, em barcos que naufragam e em fronteiras de arame farpado. É certo que desprezam a vida, mas têm uma missão e não hão de querer ficar pelo caminho sem a cumprir.
Só quem tem de escolher entre enfrentar a morte por amor à vida, é que se decide a atravessar, em condições miseráveis, uma Europa que, ainda por cima, lhe é hostil. Só quem procura a paz, vencendo o medo, em troca de todos os sonhos.