Hoje, o pequenino Ahmed venceu a timidez e veio perguntar-me o meu nome. Há uma semana só abanava a cabeça, quando me metia com ele, enquanto se escondia atrás do tio. Já fala francês,
aprendeu aqui no centro com a professora Cécile, e estava cheio de vontade de me mostrar. Com um grande sorriso, continua a conversa, dizendo-me o seu nome, que vem da Síria e gosta de jogar futebol no parque. Tem 8 anos. Elogiei-o e fiz uma apresentação do mesmo género, disse-lhe de onde vinha, nome, idade, e que gostava de desenhar.
Desenhei vários animais e ensinei-lhe os seus nomes. Pegou na folha e repetiu-os, contente. Omar, 6 anos, veio juntar-se a nós, intrigado, e ergueu a mãozinha muito esticada para que eu lhe desse “mais cinco”. Riu-se muito, puxou a fita que me prendia o cabelo e desatou a correr com ela na mão, maroto. Fui atrás dele, quando o apanhei, virei-o de pernas para o ar e pu-lo a rodopiar. “Ai ai ai”, disse-lhe. Passou o resto do dia a repeti-lo. Passava por mim, com um sorriso reguila, puxava-me o braço e dizia “Adriana, ai ai ai”.
As crianças dão cor e alegria ao centro de refugiados do Hall Maximillian. É paradoxal o que sinto: custa-me vê-los, tão pequeninos, nesta situação de vida, mas também me alegra constatar a facilidade com que se adaptam a novos ambientes, o facto de não terem memórias longas e a espontaneidade com que se riem de uma brincadeira qualquer.
Afinal, para uma criança, a vida é uma novidade. Não falamos a mesma língua, mas podemos passar horas a rir, a brincar e a comunicar, sem palavras. Talvez não saibam o que significa ser refugiado, apesar de o sentirem, eu isso vejo. Têm uma perceção do exterior mediada pelos sentimentos dos adultos que cuidam deles, sendo assim tocados pela incerteza, instabilidade e insegurança.
Este tempo será de certeza mais fácil para as crianças que viajam em família. Nem quero pensar no que sentem os muitos que foram separados dos pais, entregando-se a outros colos que os trouxeram até aqui, em nome da sobrevivência. Quero acreditar que com imaginação e vivacidade, a sua integração será mais fácil. Como também dará força, cor e esperança aos adultos que com eles caminharam para a paz. Isso vê-se já, aqui no centro.
Tenho observado com interesse que grande parte das doações que chegam ao centro são artigos para crianças. Brinquedos, material de desenho, livrinhos, roupas, carrinhos de bebé e fraldas, para além de sacos de guloseimas e bolachinhas. As pessoas tendem a proteger os mais pequenos, as crias, como se também fossem suas. Ainda bem. Com as crianças é tudo mais fácil, até a solidariedade. Não só são indefesas, como não têm idade para “ter culpa”. Ninguém desconfia de que são terroristas, ninguém as vê como ameaças aos nossos empregos, nem sequer têm uma religião diferente. Podemos por isso ser naturalmente solidários e soltar o nosso instinto inconsciente de salvar aqueles que asseguram a
continuidade da espécie. Só espero, no entanto, que não nos esqueçamos de que cuidar das crianças é cuidar das suas famílias, que são essenciais ao desenvolvimento e bem-estar destes miúdos fugidos da violência.
O ambiente aqui no centro é emocionalmente confuso e conto com os mais pequenos para manter alguma normalidade e alegria. Hoje, ao fim da tarde, fruto da acumulação de emoções fortes, fome, cansaço, frio e desconforto, houve um desentendimento entre dois homens. Começaram a ouvir-se gritos na casa-de-banho e muita gente se juntou à volta deles para observar a briga.
Corri para ir buscar as crianças, muita violência já elas viram, levei-as para o meu balcão e distribuí sacos de pipocas. Atilhos desatados, mãozinhas afundadas naquela textura agradável e desvaneceram-se as caras de choque, com que fui encontrá-los a todos.
Os sorrisos estavam de volta. Omar lembrou-se logo de atirar pipocas às pessoas, fazendo todos os outros rir. Quando chegou ao fim do pacote, as suas mãos pequeninas não conseguiam recolher as últimas migalhas. Mandei-o abrir a boca e virei o saco ao contrário. Adorou a ideia, pegou nos saquinhos dos outros meninos e tentou despejá-los da mesma forma, fazendo chover pipocas por todo o lado.
Ao fim do dia, a princesinha Aisha, de 2 anos, presenteia-nos a todos com uma grande birra na casa das roupas. Quer escolher ela. A mãe, de bebé ao colo, está evidentemente cansada e desiste. Eu deixo a filha mexer em tudo à sua vontade. Muitas manhãs, quando eu tinha esta idade, a minha mãe passava por tormentos assim. Mesmo com a roupa já escolhida na noite anterior, eu mudava de ideias e só queria vestidos ou t-shirts cor-de-rosa. Depois de uma longa negociação, lá chegávamos atrasadas à escola e ao trabalho. Somos todas iguais.
Aisha sai, já no carrinho, com uma mochila da Hello Kitty, meias cor-de-rosa e uns sapatinhos de princesa, de aspeto altamente desconfortável. Da secção das roupas até à saída do centro, apanhei do chão e voltei a calçar-lhe os sapatos cinco vezes. Tenho a certeza de que não chegou calçada ao sítio onde passam a noite, mas é capaz de ter adormecido pelo caminho.
Um pai iraquiano apresentou-me hoje a sua linda filha de cabelos encaracolados. A menina debruçou-se do colo para me abraçar. “Falas inglês?”, perguntou-me o homem. Quando lhe disse que sim, riu-se muito. “Eu não. Só falo árabe”. Um outro refugiado aproxima-se para traduzir e peço-lhe que lhe diga que a menina é muito bonita. “Tem três anos. Ele pergunta se a queres adotar”. Rio para não chorar e digo-lhe que não posso, que as meninas bonitas têm de ficar com os seus pais. Dá uma grande gargalhada e enche a filha de beijinhos. Fiquei sem saber se ele estava a falar a sério.
Neste sítio onde a esperança é a última a morrer, acabamos todos por ser pais e filhos uns dos outros.