A doença manifestou-se muito cedo. Ao segundo dia de vida tive de ser submetida a uma cirurgia, porque nasci com uma oclusão intestinal, um efeito secundário da fibrose quística. Fizeram todos os testes genéticos até chegarem ao diagnóstico, passados três meses.
A fibrose quística resulta de alterações no gene CFTR, que levam ao mau funcionamento das glândulas exócrinas, com interferência nas vias respiratórias. Formam-se secreções muito espessas nos brônquios, difíceis de eliminar e que levam a infeções respiratórias frequentes. Há também interferências no tubo digestivo, porque o pâncreas não segrega as enzimas digestivas em quantidade suficiente para a absorção dos alimentos.
O meu dia a dia sempre foi pautado por medicação, fisioterapia respiratória e por alguns cuidados extra que os outros meninos não precisavam de ter. Cheguei a ir uns dias para o infantário, mas adoeci logo, por isso fiquei em casa até aos 6 anos. Mesmo assim, fui internada no hospital aos 3, aos 4 e aos 5 anos, com pneumonias, onde permanecia cerca de duas semanas para levar antibióticos endovenosos, uma vez que os orais não eram suficientes para combater as infeções.
Lembro-me de ser acordada a meio da noite para ser picada, porque quando somos crianças as veias são muito frágeis, os antibióticos são extremamente agressivos e os cateteres duram muito pouco tempo.
Quando fui para a escola primária, tinha de ser mais protegida do que as outras crianças. Como as aulas de Educação Física eram ao ar livre, quando estava frio não as fazia, e normalmente nunca ia a uma festa de aniversário. Às vezes, apanhava só algum friozinho e ficava logo doente, e isso implicava estar fechada em casa durante duas semanas.
A descoberta dos fagos
Comecei a tomar o Kaftrio em dezembro de 2020 [o medicamento ficou conhecido em Portugal após o apelo lançado para a sua aprovação pelo Infarmed pela jovem Constança Braddell, que sofria de fibrose quística e acabou por morrer], que no início trouxe uma melhoria, porque ajuda a proteína CFTR a funcionar melhor. Mas não é uma solução. Como tenho uma bactéria resistente e muitas mazelas, continuo a precisar de antibióticos, só que estes produzem cada vez menos efeitos.
Pouco tempo depois, vi uma reportagem sobre a terapia fágica, que utiliza bacteriófagos [ou fagos, vírus que infetam especificamente bactérias], capazes de controlar uma infeção bacteriana sem provocar danos no microbioma, além de não terem a toxicidade e os efeitos secundários de um antibiótico. Falava precisamente na aplicação a doentes com fibrose quística. Resolvi contactar um dos especialistas, a doutora Joana Azeredo, diretora do Laboratório de Biotecnologia de Bacteriófagos da Universidade do Minho (UM), para saber se podia ajudar-me.
O processo teve de passar primeiro pela minha médica de família, que depois de se informar sobre a terapia fágica, e perceber que fazia sentido no meu caso, pediu autorização à comissão de ética e à comissão de farmácia do hospital onde estava a ser seguida. Os pedidos foram negados, baseados no facto de esta terapia não estar autorizada pelo Infarmed, que reclama ensaios clínicos. Só que nestes casos são impossíveis, porque se trata de tratamentos individualizados.
Conseguimos contornar este obstáculo, graças a uma parceria entre a UM e o Queen Astrid Militar Hospital (QAMH), na Bélgica, o primeiro hospital europeu a implementar a terapia fágica. Como não está regulamentada pela Agência Europeia do Medicamento, o Parlamento belga aprovou um enquadramento legal a permitir a prescrição de bacteriófagos, como agentes farmacológicos ativos, de acordo com uma receita médica individualizada, que tem uma preparação magistral nas farmácias hospitalares.
A solução foi ter um médico belga a prescrever-me esta terapia fágica. Passados cinco meses, consegui fazer o primeiro ciclo da terapia. Há um cocktail que é inalado, o tratamento decorre em ciclos normalmente de quatro a seis semanas, e tem como intuito eliminar a bactéria ou, pelo menos, controlar a infeção.
O efeito foi muito bom. Reduziu a tosse, diminuiu a falta de ar e, como coincidiu com a passagem do Secundário para a universidade, contribuiu para uma melhor integração. Estive meses sem precisar de fazer antibióticos, algo que antigamente nunca acontecia. E quando precisei de voltar a fazê-los, foram mais eficazes, porque a bactéria estava mais fraquinha. É preciso dizer que os antibióticos continuam a ser superimportantes, mas precisamos de ter uma alternativa quando deixam de ser eficazes. Entretanto, já fiz mais dois ciclos.
Desde que saíram reportagens sobre o meu caso, o laboratório da UM recebeu vários pedidos, mas não tem condições para dar resposta a todos e não pode estar eternamente dependente da boa vontade dos médicos belgas. Em Portugal, dos cerca de 30 e tal pedidos, já foram tratados nove doentes.
Muitas pessoas (inclusive médicos) pensam que a terapia fágica é nova, experimental, mas na verdade é anterior à existência dos antibióticos, só que, quando estes surgiram, foi sendo abandonada.
É preciso salientar que esta terapia funciona com qualquer tipo de bactéria resistente aos antibióticos. Na petição que lancei, em conjunto com outra doente e a doutora Joana Azeredo, a pedir a implementação do modelo belga de terapia fágica em Portugal [assinada por mais de 8 000 pessoas], reforço que somos dos países europeus com uma das maiores taxas de prevalência de infeções resistentes aos antibióticos.
Agora, estou estável, mas de um momento para outro, a minha bactéria pode voltar a ganhar força. Se tivéssemos capacidade para preparar estas terapias, seria tudo muito mais rápido. Há casos que podem esperar meses. Mas há outros que, em poucos dias, podem não correr bem.