Foi numa situação de violência no namoro e de cenas íntimas confrangedoras que, por volta dos 18 anos, as memórias foram espoletadas. Comecei a ter flashes de tudo o que me aconteceu na infância. É como se a minha mente tivesse voltado ao passado, embora este estivesse recalcado. Há um bloco de tempo, entre os 5 e os 8 anos, de que não me lembro bem. Na altura em que comecei a recordar-me, em 2002, estava a explodir o processo Casa Pia, e isso mexia comigo de uma forma estranha.
Fui abusada por uma pessoa da família, durante umas férias de verão, em casa dele. Sempre que estava sozinha, na casa de banho, quando ia tomar banho, com o argumento de ver se eu estava a lavar-me bem, quando estava a dormir ou a brincar. A situação foi escalando, com abordagens cada vez mais estranhas, até que o instinto de sobrevivência me fez sentir que nada daquilo devia acontecer, nada daquilo era certo, e eu tinha de fugir dali.
Ao querer enfrentar e resolver estas memórias, conversei com a minha mãe e as minhas tias, que também me criaram, para perceber mais pormenores e até para procurar desenhos meus da altura. A lembrança atual é muito física e sensorial, com imagens de tudo o que aconteceu. Não me lembrava de que tinha falado com a mãe, de que lhe tinha telefonado a pedir ajuda para sair daquela casa e nem sabia que lhes tinha contado tudo. Foram elas que depois me explicaram que tinham esperança de que eu viesse a esquecer tudo, porque era muito pequena. E esqueci.
Hoje, é mais fácil perceber e pôr-me no lugar delas. Não vale a pena ficar presa na mágoa e na culpa. Não julgo, acredito mesmo e sei que elas, com o conhecimento da altura [início dos anos 1990], fizeram o que acharam ser o melhor para mim.
Esporadicamente via esse familiar, mas fugia e evitava-o. Nunca mais estive sozinha com esse homem. Quando morreu foi um alívio, porque assim sei que não vai fazer mal a mais ninguém. Por agora, ainda não me chegaram relatos de abusos a outros familiares, ainda não.
Quem o fez não o fez só a mim. Um monstro não se reforma. O silêncio das vítimas só faz crescer o medo, a culpa, a dor, a solidão, o terror. O silêncio é a maior arma que estes predadores têm. A minha principal motivação é alertar os pais para o facto de que os agressores não têm cara. São normalmente pessoas muito prestáveis, muito amigas, pessoas da nossa confiança e do nosso círculo íntimo.
Há muitos graus de abuso. Os agressores não têm de magoar nem ser violentos. Normalmente, nem o são. São bastante meigos, carinhosos, atenciosos, brincalhões e lúdicos. Isto é tão negro e tão monstruoso que até já existem manuais na dark web, que ensinam como enganar os pais, as instituições, a fazer a aproximação e o contacto com as crianças – é nojento.
A minha vontade é empoderar as crianças. A palavra da criança tem de ser, uma vez por todas, considerada e respeitada. Os abusos físicos e sexuais a menores passam de geração em geração, e não é porque sempre aconteceu que isto é normal e natural. É um crime.
“Uma vida que foi destruída”
Falar num assunto como este é muito doloroso, a pessoa tem de estar preparada. Por isso, este tipo de crime nunca devia prescrever. Foi uma infância que foi roubada, uma vida destruída. Fazer terapia é caro, as pessoas precisam de sobreviver e, em Portugal, a saúde mental está no fundo do poço.
Tem de existir prevenção e educação sexual, para que depois a criança possa perceber o que está errado. Educação sexual não é falar sobre sexo, é falar sobre sexualidade e sobre o corpo; sobre os limites, o respeito e o consentimento.
Tem de lhes ser explicado quais são as suas partes íntimas, incluindo o peito, a boca (não há beijinhos na boca)… não são só os órgãos sexuais reprodutores e o ânus. Tem de haver muito diálogo desde pequeninos, desde o ato de trocar a fralda.
É preciso explicar-lhes que um segredo bom é uma coisa que nos deixa felizes, é uma surpresa que estamos a preparar e, em breve, toda a gente vai saber. Um segredo mau é algo que nos deixa a sentir mal, nervosos e preocupados… Deve-se ensinar às crianças que, quando alguém nos pede para guardar segredo de uma coisa que nos deixa assim, que nos provoca ansiedade e mal-estar, é porque quer o nosso mal.
Os predadores estão em todo o lado. Não é por ser adulto que a pessoa que está a tomar conta das crianças, seja no ATL, na catequese, seja nas aulas de canto ou de natação, está creditada e tudo aquilo que faça está correto. Nenhum adulto, nenhuma pessoa mais velha, pode pedir para ficar sozinho com uma criança.
É uma questão de sensibilidade. Se a criança não quer ir, não vai; se não quer dar beijinho, não dá; se não quer estar ao colo, não está; se não quer ficar na casa da ama, não fica. Arranja-se uma solução.
Foi na sequência de ter partilhado a minha história que a Justice Initiative chegou até mim, e então associei-me à causa de Guido Fluri e da sua fundação. Em abril deste ano, pouco tempo depois de ter falado publicamente, o Instituto de Apoio à Criança recebeu a exposição Shame – European Stories, em que se retrata a realidade dos abusos e maus-tratos a crianças na Europa, com fotografias tiradas por Simone Padovani. À exposição já se juntaram, entretanto, outras vítimas de abusos sexuais por parte do clero. As histórias vão sendo partilhadas e a mostra vai crescendo. Além disso, foi apresentada uma moção ao Conselho da Europa, para que as leis sejam revistas, por forma a tornar a internet segura para as crianças e acabar com o abuso sexual infantil online, na União Europeia. A petição está disponível em https://justice-initiative.eu/pt-pt/petition/.
Depoimento recolhido por Sónia Calheiros