Não tive um nascimento fácil nem uma vida facilitada. Mas todas essas dificuldades contribuíram inquestionavelmente para quem hoje sou – qualidades e defeitos.
Não se sabe, exatamente, qual terá sido a causa da minha paralisia cerebral. Tudo indica que, por algum problema aquando do parto, o meu cérebro não recebeu oxigénio durante certo tempo. Isso provocou a morte de células. Quando nasci, há 52 anos, em Vouzela – que distava horas e quilómetros dos grandes centros urbanos –, pouco se sabia sobre esta condição. Os meus pais só foram confrontados com a minha realidade quando eu tinha 2 anos. O primeiro diagnóstico que ouviram, em Aveiro, foi aterrador: “Ele não anda, não fala, e vamos ver se consegue pensar…”. Não desistiram e, mais tarde, em Coimbra, o dr. Luís Borges [referência nacional na paralisia cerebral] desmontou completamente o tal diagnóstico. Daí em diante, não procuraram curas milagrosas, mas soluções para minorar as minhas limitações.
Cresci normal, mas diferente. Tenho dificuldades notórias em caminhar e algumas limitações a falar – cartões de visita para quem me fica a conhecer. Atualmente, a sociedade já está muito mais preparada para lidar com a diferença. No entanto, quando cresci e fui para a escola, alguém com paralisia cerebral era considerado fora do tal “normal”.
Em casa, sempre fui tratado de igual para igual. Os meus pais não me protegeram nem me quiseram fechar numa concha. Lidaram comigo da mesma forma que lidaram com o meu irmão: ajudaram e educaram sem proteger; partilharam e criticaram sem distinguir. Assim, nem fui tendo consciência da minha condição. Participei em tudo e fiz tudo. Com maior ou menor dificuldade, mas fiz. A paralisia cerebral não foi determinante para a minha luta pela igualdade.
O percurso académico foi praticamente igual ao dos meus amigos. Tive dificuldades, sim, mas quem não teve? Tive boas e más notas. Sucessos e insucessos. E descobri o melhor caminho para mim, onde me enquadrava. Podia ter seguido Economia, Gestão ou Contabilidade, mas a minha paixão já era a Informática.
Em casa, sempre fui tratado de igual para igual. Os meus pais não me protegeram nem me quiseram fechar numa concha. Lidaram comigo da mesma forma que lidaram com o meu irmão: ajudaram e educaram sem proteger; partilharam e criticaram sem distinguir. Assim, nem fui tendo consciência da minha condição. Participei em tudo e fiz tudo
Sempre reconheceram as minhas capacidades, mas a dificuldade, muitas vezes, foi conseguir usar tais competências. Admito que alguns problemas surgiram porque, como outros, eu era brincalhão, preguiçoso e distraído. Com a mudança de Vouzela para Viseu e, mais tarde, para a capital, para estudar na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, comecei a ganhar outro tipo de responsabilidade. Em todas as turmas, felizmente, fui “só” mais um – e nunca um “aluno especial”.
A sociedade deve entender que, apesar das diferenças, somos todos mais ou menos iguais. Não quero paternalismos nem “palmadas” nas costas, mas também não quero que olhem para mim como um exemplo de superação ou como um super-homem. Quero que me tratem como aos restantes, com respeito, em diálogo direto.
No mercado de trabalho, houve e há alguma estranheza nos primeiros contactos, mas quando as pessoas me conhecem, as portas abrem-se e as barreiras desaparecem. Ainda não tinha acabado o curso e já recebia convites profissionais. A adaptação nunca foi fácil, mas aconteceu. E a atitude de reciprocidade foi o principal: da minha parte, assumir não ser um “coitadinho”; dos outros, ser tratado como “igual”.
“Não quero que decidam por mim”
Comecei por trabalhar no setor público, no Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), e depois no Instituto Nacional de Estatística (INE). Mais tarde, passei para o setor privado, primeiro na Vodafone e depois na IBM Portugal, onde desempenhei funções de consultor em empresas nas áreas das telecomunicações, banca e serviços financeiros, e, desde 2019, na Softinsa (grupo IBM), como arquiteto de soluções IT. O meu percurso de eventual sucesso resulta da integração que recebi, das conquistas que alcancei e dos erros que cometi. Mas é como diz o Sérgio Godinho: “Dá-se a volta ao medo, dá-se a volta ao mundo.”
As barreiras físicas são as mais simples de serem resolvidas, haja vontade de as derrubar e de construir uma rampa acessível ou um passeio adequado a cadeiras de rodas. Barreiras piores são as das atitudes, da falta de conhecimento e as de julgamento. E o combate a estas barreiras atitudinais tem de começar do nosso lado, acontecer de forma constante e ser encarado como um processo a partilhar por todos.
Quanto às minhas principais conquistas, podia elencar a família, enumerar os bens materiais… Mas a principal conquista foi a plena integração no mercado de trabalho e saber que, enquanto trabalhador, estou a contribuir para gerar conhecimento e riqueza para o meu País.
Agradeço aos meus pais a forma extraordinária como lidaram com a paralisia cerebral. À minha mãe, que me mandou muitas vezes para a “piscina”, mesmo que para uma “piscina” sem água, onde não tinha “pé” e não sabia nadar. O meu irmão – que já não se encontra entre nós e partiu sem avisar – também foi uma peça fundamental no meu desenvolvimento pessoal, social, político e cultural. Mais tarde, a este núcleo inicial juntaram-se a minha mulher – e a sua família, que me recebeu de braços abertos – e o meu filho.
O dia chegará em que a minha deficiência motora ou a paralisia cerebral venham a tolher o meu ser, quem sou e o que faço. Defendo plena dignidade e, por isso, se um dia chegar em que não possa ser “eu”, quero poder decidir se cheguei ao fim. Se tal acontecer, não quero ficar à espera de que o coração pare. Não quero que decidam por mim. Quero, nesse dia, continuar a ser autónomo e ter capacidade de decidir. Quero poder dizer “Stop!”. Vivi com dignidade. Quero, se se justificar, morrer de forma igual.