Se há oito anos me tivessem dito que ia ficar numa cadeira de rodas, provavelmente teria pensado que preferia ir desta para melhor. A ideia que tinha e que todos têm é a da cadeira de rodas como uma prisão, um castigo. O que de pior pode acontecer à vilã da novela? Ficar paraplégica e ir parar a uma cadeira de rodas.
Foi há sete anos. Tinha ido ao Brasil visitar uma amiga. Já saí de Portugal com uma dor nas costas e uma sensação de dormência nas pernas, mas como fazia ginásio pensei que fosse uma compressão do músculo e que eventualmente iria descomprimir. Quando cheguei ao Rio de Janeiro, a dormência acentuou-se e perdi a força nas pernas.
Celebrei a passagem de ano em casa e no dia 1 já não conseguia levantar-me. Estive um mês e 17 dias internada no Brasil. Fizeram-me imensos exames e descobriram que tinha uma inflamação na medula, uma mielite transversa. Terá sido algo autoimune, ou seja, o meu corpo reagiu de forma exagerada a alguma coisa.
Vim para Portugal e repeti todos os exames. Não houve melhoras. Lembro-me de o médico me ter dito: “Tens uma lesão completa na medula. Sabes que, à partida, as tuas probabilidades de voltar a andar são reduzidas?” Estudei Medicina durante quatro anos, sabia o que era uma lesão na medula. Naquele momento queria era sair do hospital, mas perguntei apenas se iria poder ser mãe. Ele disse-me que sim.
Fui direta para o Centro de Reabilitação no Porto, onde aprendi tudo nesta nova condição. Tinha pequenos momentos de frustração porque as coisas eram feitas de forma mais lenta. Antes cruzava a perna quase sem pensar, agora tenho de pegar na perna e passá-la por cima da outra para o fazer. Ou se quero ir tomar um café, jantar com amigos – antes dava uma corridinha até casa, tomava banho e saía, agora não é assim. Foi uma aprendizagem para perceber que há determinadas coisas que vão demorar mais tempo.
Mas nunca me senti revoltada ou deprimida por estar numa cadeira de rodas. Para muitas pessoas à minha volta foi difícil entender isso. Lembro-me de perguntarem se já me tinha “caído a ficha”, quase como se não me fosse permitido sentir-me bem. Isto era tão frequente que chegava a questionar-me: “Será que estou a camuflar algum sentimento e, um dia, vou entrar em depressão?” Passaram sete anos e não aconteceu.
“Uma espécie rara”
O pior foi a adaptação cá fora. As pessoas deixaram de me ver como uma cidadã válida ou capaz e passaram a tratar-me como uma criança. É frequente estar num café e perguntarem a quem estiver comigo: “O que é que ela vai querer?” Ou ir fazer as minhas compras sozinha, numa situação em que não existe perigo nenhum, e alguém começar a empurrar a minha cadeira sem me perguntar se preciso de ajuda.
Às vezes, estou numa esplanada e o meu telemóvel cai ao chão. De repente, levantam-se cinco pessoas para o apanhar. Sei que, no fundo, essas cinco pessoas já tinham reparado na minha presença. Parece que não consegues misturar-te na sociedade, és sempre alvo de muita atenção.
Comecei a partilhar este tipo de desabafos na minha conta de Instagram e a dizer: “Sinto-me uma espécie rara.” Recebia mensagens de pessoas sem deficiência a pedirem desculpa porque no dia a dia tinham estes comportamentos, e as próprias pessoas com deficiência começaram a identificar-se com a sensação de “espécie rara”. Resolvi mudar o nome da conta e alertar para o capacitismo que, de forma sucinta, é a discriminação, nas mais variadas formas, da pessoa com deficiência.
A comunidade começou a crescer. Parte deste crescimento também está relacionada com o humor que coloco nas publicações. Não isento as pessoas das suas responsabilidades, mas acho que a deficiência é um tema de que muitas têm medo, é desconfortável. O humor faz com que pensem sobre as suas atitudes, sem se sentirem julgadas. E a mensagem passa.
A solução está no diálogo. Temos de falar, temos de educar porque o mundo capacitista foi construído para deixar as pessoas com deficiência presas em casa. Já me aconteceu estar numa discoteca com os meus amigos e uma senhora dizer-me: “Parabéns por estares aqui. Não é para qualquer um.” E eu penso: “Mas onde é que estas pessoas pensam que tenho de estar?” Não posso estar a divertir-me sem pensarem que é uma coisa absolutamente incrível. Eu trabalho, passeio, tenho uma vida, e não acordo todos os dias a pensar: “Uau, que guerreira que sou.” Existe muito esta ideia de pensarem que a nossa vida ou é muito triste ou somos todos uns heróis.
Priorizar a vida
Antes de ficar na cadeira, estava numa fase muito conturbada da minha vida porque não sabia o que queria fazer. Vivia sozinha e trabalhava num bar na Baixa do Porto. Sempre adorei estudar, mas já não estava feliz em Medicina. Gostava da área da Nutrição, mas encarava-a como hobby. Sei que soa a clichê, mas a cadeira de rodas fez-me priorizar. Pedi transferência de curso para Nutrição e foi o melhor que fiz. Adoro a minha profissão.
Muitas pessoas não acreditam, mas a minha vida deu uma volta para muito melhor. Se me dessem a oportunidade de voltar a andar, com a condição de apagarem estes sete anos da minha vida, não sei se queria. Comecei a fazer tantas coisas a nível profissional, tenho tido imensas oportunidades para falar sobre o tema da deficiência, tem sido tudo incrível.
Claro que ainda há muito a fazer. Gostava de ver mudanças na acessibilidade, mas o que queria mesmo é que a mentalidade mudasse e, para isso, são precisas gerações. Tenho tocado num tema que, quer queiram quer não, é desconfortável para muita gente. Mas tem de ser falado, caso contrário, não desmistificamos as pessoas com deficiência que, afinal de contas, são apenas pessoas.