“Procuro algo em mim que ainda não sei. Quieta, muito quieta. Não vá esse algo falhar o alvo”. Assim escrevia Olga Roriz a 12 de agosto de 2024. A reflexão é uma das centenas das quais, ao longo de um ano e seis residências artísticas, a coreógrafa e bailarina reuniu no enorme desdobrável que estende, agora, no chão da sala de ensaios da companhia que fundou há 30 anos.
Defronte a si tem o mapa que a ajudou a chegar a O Salvado, solo que apresentará a 9 de julho no Teatro São Luiz, 12 anos após o seu último, A Sagração da Primavera.
Antes disso, porém, festejará 30 anos da Companhia Olga Roriz (COR), fazendo subir ao palco do CCB, a 11 e 12 de abril, A Hora em Que Não Sabíamos Nada Uns dos Outros, espetáculo a partir de Peter Handke que recria um dia na vida da praça de uma cidade, no qual reunirá 32 dos bailarinos que passaram pela COR desde a sua criação.

Visivelmente emocionada com aquilo que define como “algo único que não se repetirá nunca mais na vida”, Olga Roriz falou com o JL sobre o espetáculo, as memórias dos últimos 30 anos e o novo solo, um dos espetáculos mais aguardados do ano.
Porque é que escolheu esta obra para celebrar os 30 anos da COR?
Olga Roriz: Porque é uma obra que precisa de um elenco muito grande e eu gostava de ter todos os bailarinos que passaram por esta companhia e tê-los juntos. Pensei, “ai é a hora em que não sabíamos nada uns dos outros? Ora vamos lá saber onde é que vocês andam”. Não consegui juntar todos, obviamente, porque são muitos, porque alguns já não estão a trabalhar ou vivem noutros países, mas reuni 32. O espetáculo vai ser uma coisa única. São pessoas muito importantes do panorama cultural que, de repente, vão-se juntar aqui e isto não vai acontecer nunca mais na vida. Há pessoas, como o Francisco Rosseau, que vêm da Gulbenkian, pessoas do teatro, como o Miguel Moreira, pessoas que entretanto fizeram carreira e destacaram-se noutras áreas artísticas, como a Sónia Aragão, enquanto atriz, ou a Adriana Queiroz, enquanto cantora.
Foi fácil convencê-los?
Sim, mas estavam preocupados, porque que não dançavam ou não iam para o palco há muito tempo. Expliquei-lhes que esta peça foi pensada para a comunidade, para pessoas que nunca dançaram nem foram ao palco, e que nós, inclusive, íamos poder fazer coisas diferentes e muito mais interessantes porque somos bailarinos e, de qualquer maneira, temos essa capacidade.
“O espetáculo vai ser uma coisa única. São pessoas muito importantes do panorama cultural que, de repente, vão-se juntar aqui e isto não vai acontecer nunca mais na vida”
Já começaram a ensaiar?
Começamos dia 5 de abril. O primeiro dia de ensaios vai ser muito interessante. Não vai haver ensaio, vai ser tudo a pôr a conversa em dia até eu dizer: “meninos, acabou, vamos ensaiar”. Em relação à peça original não vai dar para inventar muito, nem se pode, agora a capacidade que aqueles bailarinos têm, depois de estar no palco, de poder desenhar melhores personagens, vai ser muito bonito. E juntar todos vai ser muito emocionante.
Sobretudo, porque a própria peça fala de encontros e desencontros.
É realmente uma peça que nos faz pensar. Sobre o que é uma cidade, o que são estes não encontros, quando nos cruzamos todo o tempo com dezenas de pessoas, mas cada vez sabemos menos uns dos outros.
A COR tem desenvolvido projetos de inclusão social que parecem tentar reverter esta tendência.
Sim. Estamos a trabalhar desde cerca de 2017 no estabelecimento prisional do Linhó. Já fizemos um espetáculo também com eles, que fiz eu, e apresentámos-nos na Gulbenkian. Foi um sucesso. É um trabalho duro no sentido em que se apanha com muita coisa, mas depois é a liberdade para eles. Quando estão connosco, sentem-se livres, completamente libertos. De repente, têm uma relação com eles próprios, com o seu próprio corpo, com os outros reclusos, com as próprias famílias. A dança dá-lhes um poder que não tem a ver só com a liberdade, é um poder de pensamento de reestruturação interna muito grande.
Este é um dos muitos projetos que tem vindo a desenvolver ao longo dos últimos 30 anos. Recorda-se ainda como é que tudo começou?
De uma maneira que não é exatamente aquilo que as pessoas pensam. Quando comecei a fazer solos para a Gulbenkian, a partir de 1988, percebi que estava a criar um método de trabalho, de criação e construção de espetáculos que não conseguia fazer ali, numa companhia de repertório. Depois, em 1992, o diretor administrativo da Companhia de Dança de Lisboa convidou-me para ser diretora da companhia e eu aceitei. Pensei “ótimo, aqui está um sítio onde vou começar com os meus bailarinos, os bailarinos que me vão escolher, o que para mim era importante, e onde vou começar a desenhar e a construir um método de trabalho meu”. No fundo, ainda hoje poderia ser a diretora da Companhia de Dança de Lisboa, não precisava ter a minha companhia.
Porque é que acabou por criar a sua?
Dei-me muito mal com o administrador da Companhia de Dança de Lisboa, demiti-me ao fim de um ano e, comigo, todos os bailarinos. A vida tinha de continuar, não queria voltar para a Gulbenkian, portanto, a única hipótese era formar um grupo. A maior parte dos bailarinos que se tinham demitido ficaram comigo. Não foi fácil. Houve ali um ano de interregno e em abril de 1995 foi fundada oficialmente a COR. Não foi nenhum grito do Ipiranga, nem surgiu porque eu quisesse muito uma companhia. Foi mais pela necessidade de continuar.
Nessa altura, quais os princípios que achou importante implementar na recém criada companhia?
O mais importante era pôr em prática esse método que eu queria, perceber como é que conseguiria criar de outra forma. Porque, no fundo, são as minhas criações, é a minha dança que fala por mim, não é? Eu não estava completamente contente, não sobre o que estava a falar, mas sobre a forma como estava a falar. Queria ir mais longe, mais fundo, queria descobrir. Sempre descobrir, descobrir.
Acrescentar outras disciplinas à dança talvez?
Isso acho que sempre. É preciso não esquecer que, dos oito aos 18 anos, a minha formação foi dentro do Teatro São Carlos, a ver todas as temporadas de ópera e dança. Fui muito influenciada por música clássica, música contemporânea, dança clássica, dança contemporânea, teatro, cinema, porque a minha mãe gostava imenso de cinema. Portanto, eu estava cheia de ressonâncias de fora e muito ativa criativamente. E desde pequenina que queria ser coreógrafa.
“Perguntei à minha mãe quem é que fazia a dança dos bailarinos. Era tão pequenina que nem conseguia dizer a palavra. Disse só: quero ser isso.”
Ah, mais do que bailarina?…
Sim. Perguntei mesmo à minha mãe quem é que fazia a dança dos bailarinos. Ela respondeu que eram os coreógrafos e eu, como era tão pequenina que nem conseguia dizer a palavra, respondi só que queria ser isso. Apesar de gostar muito de dançar, havia uma parte criativa em mim muito forte. No início de toda a carreira da COR o objetivo era fazer mais e melhor e ter os meus bailarinos.
E depois?
Depois, ao longo do tempo, também com este espaço [Palácio Pancas Palha], começam a surgir outras ideias, que têm a ver com a formação, as residências artísticas, o apoio a novos artistas, novos coreógrafos e toda a parte de inclusão social. A parte pedagógica também é muito importante, porque é um estilo, um modo de estar. Uma das coisas mais importantes neste curso é tirar o síndrome do estudantezinho, fazer com que os alunos se sintam mais profissionais, mais criadores, mais pessoas, mais abrangentes, terem este lado do grupo como comunidade. Mas também poderem pensar se é mesmo isto que querem, se gostavam mais de escrever sobre dança, ou se gostavam mais de ser bailarinos, ou coreógrafos, ou seja o que for.
Há algum momento, ou momentos, dos últimos 30 anos que guarde com especial carinho ou saudade?
A minha vida está dividida em espetáculos, digressões e viagens. Tanto em Portugal como fora, os momentos de criação são sempre muito especiais. Quando estamos a criar com os bailarinos parece que estamos mais sensíveis, com um olhar mais desperto, com os ouvidos mais aguçados, tudo está um bocadinho mais à flor da pele. Mas tive um momento da minha vida que foi muito especial.
Qual?
No centenário da Callas, o Rui Esteves, na altura programador das Artes de Palco da RTP, convidou-me para fazer quatro solos com árias de Bellini. Quando pus a Callas e comecei a dançar, penso: “não, eu vou estragar tudo se coreografar isto. Não vou marcar nada. Vou improvisar. Pronto”. Passado um ano vamos para o estúdio da Tobis, tudo pronto, e pedem-me para mostrar a primeira cena. Quando disse que não tinha nada eles iam morrendo. Depois de lhes dizer que só precisava de saber até onde podia ir, onde é que havia luz e onde é que não havia, lá concordaram. E então foi mágico. Quem vir a gravações não vai acreditar que eu estive a improvisar, porque aquilo parece que foi estudado ao milímetro. Foi espetacular.
Os solos têm sido momentos marcantes na sua carreira. O que quer explorar em O Salvado?
O texto. Como é que um bailarino pode dizer um texto, porque é que o texto aparece num espetáculo, etc. Eu própria nunca o fiz, porque os meus solos nunca tiveram texto. Agora, com 70 anos, é que quero fazer isto tudo, é maravilhoso.
“Quando estamos a criar com os bailarinos parece que estamos mais sensíveis, com um olhar mais desperto, com os ouvidos mais aguçados, tudo está um bocadinho mais à flor da pele”
É mais difícil coreografar-se num solo do que coreografar outros bailarinos?
O processo é exatamente o mesmo só que aqui divido-me muito. Não estou sempre em observação. Parte muito também da ajuda, tanto das pessoas que me estão a assistir como do que eu vejo nos vídeos que faço do processo. Nem sempre foi assim, mas, neste momento sinto muito a dualidade da bailarina e intérprete, por um lado, e da coreógrafa que fica à espera que a bailarina consiga fazer aquilo que a coreógrafa está a propor, mas que partiu da bailarina.
Porque é que acha que sente mais essa dualidade agora?
Talvez por causa de uma maturidade… Não quero sublinhar demasiado a idade, mas acho que, sem forçar, ela vai estar à partida dentro do espetáculo. Não deixo de ser uma mulher de 70 anos que é uma bailaria que se está a apresentar a solo, uma coisa física.
O que decidiu sobre o espetáculo durante o período de residência?
A coisa mais importante que ficou, por exemplo, da primeira residência foi a certeza de que quero dar cabo da quarta parede e abordar o público, olhá-lo, falar com ele, quero que me conheça como eu sou, aquilo que não sabe que eu sou. Também percebi que quero fazer o espetáculo com humor, poder gozar comigo própria, tentar construir um solo onde a dádiva vai ser um bocadinho esta de estar aqui de uma forma como nunca estive.
Os textos são seus?
Quem estava para escrever os textos era a Maria Quintans, que morreu quando eu estava na terceira residência. Mas ela já me tinha dito que devia ser eu a escrever. Aliás, tenho uma gravação dela, que não sei ainda se vou usar ou não, onde diz, “os teus textos são lindos, não precisas nada de mim. Estão lindíssimos, são fortíssimos”.
E vai ter textos da Maria de outra altura?
Não. Acabámos por perceber, ainda estava ela viva, que não fazia muito sentido. Isto é um espetáculo tão íntimo…
Sobre memórias?
Não é sobre as minhas memórias, mas é sobre mim, sobre eu estar aqui e a reflexão de mim noutras pessoas.