Mãe Coragem, a obra-prima de Bertolt Brecht (1898-1956), é uma peça de movimento incessante e é assim que, depois do CCB e do Festival de Almada, a carroça de Anna Fierling, com os seus três filhos – Eilif, Queijo-Suiço e a muda Kattrin –, chega agora às Ruínas do Carmo. Claro, pelas mãos da companhia do Teatro do Bairro/Ar de Filmes e do seu encenador António Pires, que todos os anos, no verão, estaciona no Convento do Carmo.
Neste ano de comemorações dos 50 anos do 25 de abril, o Largo do Carmo reveste-se de especial carga simbólica, a que se soma a celebração dos 20 anos da companhia do Teatro do Bairro, fundada por Alexandre Oliveira da produtora Ar de Filmes e pelo encenador António Pires, e que conta com mais de cinquenta criações e diversas publicações.
Damos, assim, os parabéns ao Teatro do Bairro por esta vintena de anos tão bem representada ao serviço do público e do teatro, a contribuir indelevelmente para vida cultural portuguesa, com sentido agudo de responsabilidade artística e social.
A escolha de Mãe Coragem, uma peça veementemente contra a guerra é, de facto, muito pertinente para os nossos tempos. É o encenador que nos informa sobre a sua experiência de refugiado da guerra civil em Angola, entre a UNITA e o MPLA, e de como sendo criança essas memórias de terror perduraram e foram base de reflexão para esta crónica épica.
Mãe Coragem foi escrita no exílio, uma vez que depois da ascensão de Hitler ao poder, em 1933, Brecht foge para Praga, depois para Viena, e sempre em fuga antecipada da invasão das tropas nazis, segue sucessivamente para a Suíça, Dinamarca, Suécia, Finlândia, União Soviética e finalmente chega aos EUA.
É uma parábola sobre a guerra religiosa europeia dos 30 Anos (1618 a 1648), recurso dramático distanciador que Brecht utiliza para analisar o momento de catástrofe iminente, vivido na época, à beira da 2ª Guerra Mundial. Hoje, como ontem, as guerras continuam com os seus horrores, a fazer mortos, feridos, exilados e refugiados, mas também a proporcionar negócios cínicos que expõem a atualidade de Mãe Coragem; tanto na luta de sobrevivência da sua protagonista, como na crítica ao seu conformismo com o estado das coisas.
De facto, seguimos Anna Fierling durante 12 anos da guerra, como vendedora ambulante, a circular por diversos territórios, seguindo vários regimentos, a fazer os negócios que a guerra proporciona, enquanto tenta proteger os seus filhos da mesma guerra que a sustenta.
No fim, depois de perder todos os filhos, vai continuar a sua “via-sacra”, sem se dar conta do traçado do círculo vicioso que desenha.
Para este espetáculo, Pires criou uma versão para palco que segue com fidelidade a perfeição do belíssimo texto de Brecht, em tradução de Ilse Losa e com a música de Miguel Sá Pessoa e João Sampayo, em que o acordeonista Flávio Bolieiro agrega verosimilhança estilística ao formalismo brechtiano.
Na cenografia contou com a colaboração habitual do arquiteto João Mendes Ribeiro, com quem partilha a linguagem estética, a criar um espaço cénico abstrato e escultural, de evidência visual, baseado no Memorial do Holocausto, em Berlim.
Esta opção confere distância brechtiana ao espetáculo, a permitir que o objeto icónico da carroça tenha espaço para o movimento que caracteriza a essência da peça, sem princípio nem fim, tal como a guerra, que pode ser reativada a qualquer momento, pela mesquinhez de interesses e desprezo pela vida. Uma referência especial para os relevantes figurinos de Luísa Pacheco, tão significativos quanto o gesto dos atores.
Naturalmente que é preciso uma grande atriz para dar verdade a Anna Fierling, personagem escrita para Helene Weigel, mulher de Brecht, a vendedora ambulante eticamente ambígua e alienada, que com resiliência se mantém ao comando da sua carroça; e essa atriz é Maria João Luís.
Desde a sua sublime interpretação, em 2006, no Convento das Mónicas, da feirante Maria, na oratória profana, Stabat Mater, de Antonio Tarantino, com encenação de Jorge Silva Melo, que se desenhava esta fabulosa interpretação de Mãe Coragem.
Numa personagem feita à sua medida, que nos entrega com um trabalho de minúcia e desenvoltura, tanto no código épico como no pathos afetivo e obsessivo, Maria João Luís ergue, em tempo real e com empenhamento poético, a complexa dialética entre subjetividade e leis da história, a tornar legível essa contradição com verdadeira teatralidade.
Num elenco muito coeso que responde com coerência às invetivas da estrutura épica, destaque para Carolina Campanela, pela talentosa força expressiva colocada na personagem Kattrin, Jaime Baeta no voluntarioso Eifin, João Sá Nogueira no ingénuo Queijo-Suíço; Ricardo Aibéo e João Barbosa protagonizam a cena fundamental entre o cozinheiro e o capelão que, sendo inimigos, se compatibilizam na nostalgia pela guerra. Sofia Marques, igualmente excelente, na prostituta Yvette, a metaforizar o gesto de amor como mercadoria no mundo capitalista.
Oferecendo um tratamento novo e teatralmente depurado da matéria Mãe Coragem, o Teatro do Bairro produz um acontecimento teatral que estimula o espetador a encontrar a sua verdade ética.
Ruínas do Convento Carmo – de segunda a sábado às 21h30. Até 17 de agosto