Quem presenciou os dois anteriores espetáculos da trilogia: Maria, a Mãe (2020); Jesus, o Filho (2022), é natural que estabeleça comparação com José, o Pai (2023), sobretudo porque a unidade estilística e a justa fórmula do espaço de representação versus cenografia, de Samantha Silva, é a mesma. De facto, se a cenografia se apoia no pequeno oratório portátil da Sagrada Família, a Sala Estúdio responde, em escala maior, ao mesmo dispositivo, onde se replicam as figuras da família, agora em versão de Elmano: o pai já não é provedor e protetor, a mãe já não está sob missão divina e o filho assume o sacrifício pela negativa, imolando-se no seu solipsismo atormentado. Embora a constituição familiar se altere em número e forma, a personagem central, em cada capítulo da trilogia, mantém com o seu mito uma tensão permanente entre os traços identificadores e agora disruptores.
Elmano Sancho perscruta os sinais da família, à procura de novas identidades e caminhos, a demonstrar a dificuldade que a perda de transcendência origina na determinação das novas funções paternal/matriarcal/filial, em comparação com a perfeição primordial da tríade José, Maria, Jesus. Neste sentido, pareceu-nos que a crise, assinalada pelo autor nas três jornadas, surge menos crispada nesta terceira variação, por ação, precisamente, de soluções e temas teatrais. Não só porque a personagem José, o pai, é um ator de teatro no desemprego, em espera angustiante pelo toque do telefone, na esperança de que, a qualquer momento, possa chegar um convite de trabalho, não só porque sua filha também é atriz, com quem estabelece uma rivalidade violenta, mas sobretudo porque o autor introduz uma personagem especial: a atriz que chega de fora para interpelar o ator na sua morbidez, por vezes sórdida. Nessa interação, o teatro e a representação surgem como as grandes personagens que derramam significação sobre todo o espetáculo.
A interpretação é, aliás, a pedra de toque deste espetáculo, com desempenhos notáveis. Jorge Pinto, o pai, ator sem trabalho há muito tempo, alterna o humor, entre a arrogância e a humilhação, matizando a ansiedade, a manipulação e a comiseração com os tempos de ataque aos que o rodeiam, em vitupérios avassaladores. O seu movimento como animal enjaulado corresponde de forma tácita à sua insegurança existencial e espiritual. Sílvia Filipe, a filha, é magistral no seu posicionamento inflexível e lúcido perante os ultrajes a que é sujeita, sem dramatismo, ao invés, dramaticamente sólida e a oferecer-nos com deleite o seu talento e técnica. Isadora Alves, em aspirante a atriz, revela-se presença de grande teatralidade, medindo com exatidão o gesto e seus efeitos na cena. Exímia na interpretação de excertos de A Voz Humana de Jean Cocteau e da personagem Nina de A Gaivota de Anton Tchékhov, integra-os com irreverência e graça na economia geral do espetáculo. O elenco fica completo com Djucu Dabó, intérprete da neta do ator, que a atriz compõe com inteligência e jocosidade. Todo o elenco bem vestido, como sempre, pelos figurinos, de Ana Paula Rocha.
Uma nota dramatúrgica interessante é a voz off de Custódia Gallego, que interpretou a mãe, justamente, em Maria, a Mãe, e que aqui surge, como que a fechar o círculo da família segundo Elmano Sancho.
› José, o Pai
– Texto e Encenação de Elmano Sancho, Assistência de Encenação Paulo Lage, Cenografia Samantha Silva, Figurinos Ana Paula Rocha, Desenho de Luz Pedro Nabais. Com Djucu Dabó, Isadora Alves/Cheila Lima, Jorge Pinto e Sílvia Filipe. Coprodução Teatro da Trindade/INATEL, Loup Solitaire, Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão, Cine-Teatro Louletano, Teatro das Figuras e Teatro Nacional São João.
Teatro da Trindade. De quarta a domingo às 19h. Até 29 de outubro.