O poema chama-se “Save” e nele fica clara a sua relação com a memória. “Nada fica, a própria memória/ é uma mitologia, tenho-me/ como testemunha mas nada/ garante que um dia não negue/ tudo, então haverá este processo/verbal, museu portátil que com/ um gesto, dizem, está salvo./”.
Pedro Mexia (PM) é um poeta consciente da imprecisão da memória, dos efeitos da passagem do tempo, mas também sabe – e disso tem uma consciência aguda – que “tudo acaba”. E, por isso, escreve: para fixar no poema fragmentos de vida.
Com o primeiro livro, Duplo Império, publicado em 1999, PM chega agora aos 25 anos de percurso literário, efeméride assinalada com estes Poemas Reunidos, uma edição da Tinta-da-China.
Não são todos os poemas, pois de alguns se afastou há algum tempo, mas aqueles de que mais gosta, agora divididos numa nova organização temática. Incluindo vários inéditos e poemas nunca reunidos em livro, são escritos sobre a vida oculta, a cidade de Lisboa, as afinidades eletivas, as ligações familiares e outras figuras que povoam o seu imaginário. Um retrato de um poeta também cronista, leitor voraz, comentador de políticas e de linguagens públicas.
Nascido em 1972, em Lisboa, PM é licenciado em Direito e começou cedo a colaborar nos jornais, primeiro no DN Jovem, depois como crítico e cronista no DN e no DNA, nos últimos anos no Expresso. Na rádio e na televisão é um dos rostos do Programa Cujo Nome Estamos Legalmente Impedidos de Dizer (antes chamado Governo Sombra), ao lado de Carlos Vaz Marques, João Miguel Tavares e Ricardo Araújo Pereira.
Diretor da revista Granta em língua portuguesa e da colecção de poesia da Tinta-da-China, é ainda assessor para a Cultura do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa.
Vinte cinco anos de percurso literário, que esta antologia assinala, é momento propício a balanços. Também os fez? Qual a primeira imagem que lhe surge quando pensa nesta efeméride?
Pedro Mexia: É uma data com alguma importância para mim, mas nada mais do que isso. Não é um marco de nada. Faz sentido publicar este livro agora, como também teria feito quando cheguei aos 50 anos, mas aí houve alguns atrasos. O mais importante para mim era tornar acessíveis livros (ou poemas) que estavam há muito esgotados, alguns publicados em editoras que já não existem.
Também queria voltar a disponibilizar os poemas de que eu gosto, livrando-me dos outros, organizando-os de uma forma completamente diferente, o que me parece ser a marca deste livro.
Que organização é essa?
O livro não reproduz a ordem pela qual os poemas foram publicados. À organização cronológica, contrapus a temática. Fotocopiei todos os poemas que publiquei, li-os, selecionei os de que gosto mais e a partir daí organizei um novo livro.
Não me reconheço nos poemas que não estão aqui, nem tenho intenção de os voltar a publicar. Estes são todos os poemas que neste momento quero preservar, numa ordem nova
Não vê nele uma antologia?
Não. Não me reconheço nos poemas que não estão aqui, nem tenho intenção de os voltar a publicar. Estes são todos os poemas que neste momento quero preservar, numa ordem nova.
Mas 25 anos são 25 anos. Não houve balanços, revisitação do percurso feito, recordações dos momentos em que tudo se apostou na escrita?
Nem por isso. Dei importância à data porque gosto de efemérides. E porque cheguei aos 50 anos. Ter esta idade ou ter 25, quando tudo isto começou, não é a mesma coisa (como em quaisquer outras idades, claro). Há um olhar retrospetivo, existencial, que contamina o olhar para os poemas escritos ao longo deste tempo, incluindo sobre alguns que são ainda mais antigos e que foram publicados em Duplo Império.
Essa diferença de olhar, e de vida, está bem presente nos cerca de 40 poemas inéditos (ou inéditos em livro) incluídos neste volume. Tudo isto me passou pela cabeça, mas o mais importante foi a sensação de não estar contente com nenhum dos meus livros e a vontade de reunir os de que gosto mais, dando uma legibilidade ao que escrevi até agora.
Nunca publicará toda a sua poesia reunida? Esses poemas que ficaram de fora deste volume não voltarão a ser publicados?
É essa a ideia. Esta é a minha poesia reunida. E é possível que num novo livro que reúna poemas meus já não estejam algumas poemas que aqui estão. É um privilégio que é concedido aos livros de poesia: fazerem-se depurações.
E não há poemas que estejam no limbo, recusados agora mas com hesitações?
Houve alguns que estiveram até à última hora, num diálogo com a minha editora [Bárbara Bulhosa, da Tinta-da-China]. E não foram incluídos porque eram muito parecidos com outros, melhores, que estão aqui. Não valia a pena ser redundante. Não é muito provável que esses poemas excluídos regressem. Posso vir a recuperar alguns versos de poemas que no seu todo são bastante maus.
Recuperados num poema novo?
Sim. Nesta tarefa de ler tudo o que escrevi, encontrei alguns poemas francamente maus com um ou outro verso bom. Quem sabe se não surgem, reciclados, num livro futuro. Há o caso de um poema que tinha uma página e meia e que acabou reduzido a oito versos. Começava bem e depois descambava.
Também há poemas que apareceram em antologias anteriores que publiquei e não estão aqui. O que quer dizer que até há bastante pouco tempo eu achava que determinado poema era aceitável, embora hoje já não ache. Só tive um cuidado: não excluir poemas só porque não os escreveria agora, porque já não sou aquela pessoa.
Que critérios usou então para incluir ou excluir poemas?
A relação que eu tenho com os poemas é sempre a mesma: gostar ou não do poema enquanto poema. Havia poemas muito crípticos, outros muito prosaicos. Dois critérios para os eliminar. O livro de poemas que publiquei sobre Lisboa está pouco representado, porque hoje parecem sobretudo anotações.
Quis preservar os que são mesmo poemas. Mas também não quis excluir poemas por motivos que me parecessem extraliterários: porque já não sou assim, já não sinto daquela maneira, penso de forma diferente. Excluí ainda poemas que se referem a factos que eu hoje sei que não acontecerem exatamente como estão descritos e que, na altura em que os escrevi, eu não o sabia.
Em que sentido?
A poesia é não-ficção, claramente. Mas sei que há coisas que estão escritas nos poemas que foram resultado de impressões. Estavam na minha cabeça e não na vida real e assim ficaram.
Um político é sempre perseguido pelas opiniões que teve no passado. Um poeta está livre desse passado, dos eus diferentes que viveu, das visões do mundo que foi tendo?
Está livre até da sua má poesia. Mesmo quando se renegam poemas (não é o meu caso), eles estão aí para quem os quiser descobrir. Eus diferentes há certamente nos meus poemas, pois 25 anos é muito tempo. Visões do mundo nem tanto. Há poucos poemas claramente datados, até porque a maior parte é retrospetiva, falam a partir do momento e da idade que eu tinha quando os escrevi, embora se reportem a um período anterior. Por causa disso, a cronologia biográfica acaba por ter pouco interesse.
Na nota final do volume, diz que queria incluir apenas 25 poemas, mas que a sua editora o convenceu a escolher 200. Tem um núcleo assim tão reduzido de poemas de que gosta mesmo muito?
Os 25 são mais uma imagem do que uma vontade. É verdade que cheguei a propor um volume com menos poemas, talvez 80. E o critério seria simples: escolher aqueles poemas que normalmente leio em público, quer em sessões de poesia, quer nas apresentações dos meus livros. Há poemas neste volume que nunca li em público, alguns porque não se prestam a isso, outros por diversas razões.
Ainda assim, parece ser um leitor muito exigente da sua poesia.
Não sei avaliar isso. Sei que a minha editora queria incluir mais poemas. E não gosto da ideia de sermos os maiores críticos do nosso trabalho, porque nunca o somos. Este também foi o primeiro livro que fiz em diálogo com outra pessoa. E algumas escolhas resultaram desse diálogo. Esse olhar exterior foi muito útil.
A memória é seguramente a palavra mais forte deste livro. Escreve com a incerteza, a recordação imprecisa?
Sim, sim. É trabalhar com a incerteza. Há duas experiências muito comuns que mostram isso. Os testemunhos em tribunal e as conversas em família. Há sempre alguém a dizer que não foi bem assim, que aconteceu de outra maneira. E dentro de uma família há recordações muito diferentes.
Às vezes, é porque umas pessoas têm melhor memória, outras por erros ou equívocos, noutras ainda porque houve má vontade. Todos nos lembramos de forma imperfeita. A memória não é totalmente confiável. E isso é uma dimensão que me interessa muito.
Como é que isso alimenta a sua poesia?
O que me interessa são as imagens mentais. Só nesse sentido é que os poemas são um pouco ficcionais. Não vou fazer fact-checking. Nem tenho como. Não reconstruo memórias, apenas tento transmitir as imagens que estão efetivamente na minha cabeça. Não as falsifico deliberadamente, mas tenho a consciência de que é apenas uma perspetiva, uma interpretação ou uma recordação que muitas vezes é imperfeita.
Trabalha com a memória porque escreve muito tempo depois do que aconteceu, do que se evoca?
Quase sempre. Neste volume são exceções os poemas sobre Lisboa e a sequência dedicada ao meu pai, Verdadeira Herança. É óbvio que os poemas sobre a infância e a juventude também foram escritos mais tarde. Mas há muitos poemas que nascem daquelas frases que nos surgem na cabeça e que ficam num caderno de apontamentos até serem trabalhos.
Apesar de haver poemas sobre a infância, os anos mais revisitados são os que vão dos 20 aos 35. O que teve de tão nuclear essa fase da vida?
Foram os anos da grande transformação. É um período que remete para uma educação sentimental que praticamente não voltou a acontecer de uma forma tão decisiva. Houve experiências posteriores marcantes, nomeadamente perdas, mas não operaram uma transformação tão grande. Porém, embora estes sejam poemas sobre a vida privada, todos, não quero que a chave da leitura seja biografista. São poemas sobre relações humanas, mesmo quando são impessoais e não façam referência a um eu.
Entre os 20 e os 35 anos foi também a sua época de escrita mais intensa?
Há aí uma coisa muito importante, que é entre os 35 e os 42 anos não ter escrito nenhum poema.
O que determinou esse silêncio?
Foram razões mais biográficas do que poéticas. Por achar que a poesia não tinha uma ligação suficientemente forte com a vida, que era mais ficcional do que eu queria. Isto é uma interpretação, uma intelectualização a posteriori, porque na altura simplesmente não queria escrever poemas. Mas isso faz com que os 35 anos não sejam totalmente arbitrários, porque marcam o início desses sete anos sem escrever.
Como regressou à poesia?
Já não me lembro muito bem como aconteceu, mas fiquei sobretudo surpreendido com um convite para um novo livro, mesmo não tendo publicado há muito tempo. Deu-me ânimo. Senti que aquelas pessoas achavam que o que eu tinha escrito não estava terminado – e elas não sabiam que eu não escrevia há muito tempo. Foi muito importante na altura. A partir daí voltei a escrever, mas com menos frequência.
Por mais individual que seja a escrita de um poeta, ela também vive das cumplicidades que vai criando, de estímulos que vêm de fora?
Vive muito das pessoas, a todos os níveis. Por exemplo: nunca uso a palavra “poeta” em causa própria. Mas o facto de poder ser reconhecido como tal por diversas pessoas é um sinal forte. O reconhecimento que vem de fora é sempre importante, mais para uns do que para outros, claro, e mais nuns momentos do que noutros.
Ou seja, não me foi indiferente, muito pelo contrário, o que o Joaquim Manuel Magalhães escreveu sobre os meus livros, ou o António Osório, o poeta de quem fui mais próximo do ponto de vista pessoal e poético, sobretudo no início.
Aos 20 anos também havia já um conjunto de referências nucleares que se mantêm até hoje?
O universo de referências determinante é sempre o da língua em que se escreve, mas o meu encontro entusiástico com a poesia nasceu da leitura dos poetas modernistas anglo-americanos. Em momentos diferentes, Yeats, Eliot, Wallace Stevens e Philip Larkin foram foram poetas que, de uma forma ou outra, me levaram a escrever poesia. É a minha galáxia fundamental, embora nem sempre haja grandes traços destas referências no que eu escrevo.
Foram descobertas pessoais, sugestões de outras pessoas?
O que me recordo concretamente foi a leitura do Yeats na Irlanda, numa viagem que fiz. Já o tinha lido, mas quando cheguei comprei a sua poesia completa e esse mergulho foi muito marcante. Também a compra do poema The Love Song of J. Alfred Prufrock, do Eliot, numa livraria da baixa lisboeta.
Foi o meu encontro decisivo com a poesia, até pela variedade de registos, desde as referências literárias mais obscuras à linguagem coloquial, das ideias à musicalidade. É uma influência grande, mas, mais uma vez, a minha escrita está muito longe. A influência por vezes sugere qualquer coisa da ordem da imitação. Nunca foi o caso nestas referências maiores.
E as referências portuguesas?
São em maior número e foram variando ao longo do tempo. Pessoa é Pessoa, não há nada a fazer nem tem de haver. E Vitorino Nemésio, um grande poeta muito importante para mim. Sem ter heterónimos, é de uma enorme variedade, ao ponto de não se acreditar que alguns poemas foram escritos pela mesma pessoa. Não é casual que a única epigrafe portuguesa deste novo livro seja sua.
Na nota com que encerra o livro, refere-se ainda a uma relação dúplice com o idealismo. Como a define?
O idealismo tem um sentido vulgar e um filosófico. Na juventude e até muito tarde, era bastante idealista e inocente. Deixei de o ser porque não é possível atravessar a estrada, por assim dizer, e continuar a sê-lo. Acaba-se atropelado. Mas continuo a ser idealista no sentido filosófico. Parece um pouco ponderoso, mas digo idealismo por oposição ao materialismo, se se quiser. Acredito que as coisas existem em nós tal como elas existem na nossa cabeça.
Em que sentido?
Não estou a defender que a realidade não existe ou que estamos a viver um sonho. Não são essas teorias. Simplesmente, o que nos determina está na nossa cabeça. Nesse sentido, a memória determina-nos muito. Gosto de citar uma frase muito lúcida do Adam Philipps: “Tudo aquilo em que pensámos faz parte da nossa experiência.” Isso inclui o que não chegámos a fazer. Mas ter pensado nessa possibilidade também foi uma experiência.
Alguns dos meus poemas são claramente sobre hipóteses frustradas, amorosas mas não só, como gestos por fazer, palavras que não foram ditas na altura certa. Isso está na minha cabeça. A palavra não dita, por exemplo, pode até desencadear um sentimento de culpa, o que reforça a sua presença mental.
Numa crónica recente referia-se às pessoas que não visitou no hospital.
É outro bom exemplo. Aconteceu-me duas ou três vezes e senti-me terrivelmente culpado. Não aconteceu e não deixa de ser um acontecimento na minha memória.
Nessa relação com o mundo, com o passado e com a memória, há sentimento e linguagem. Mas há também uma sensibilidade própria do poeta?
Há claramente aquilo a que se chama voz, o momento em que uma pessoa encontra o seu registo, mesmo quando é múltiplo. Ao organizar este livro percebi que, mesmo nos poemas de que não gosto, o meu registo ficou mais ou menos estabelecido bastante cedo.
Foi sempre claro que tenho mais interesse pelo poema curto do que o poema longo, pelo poema contido do que o poema exuberante, o disfórico em vez do eufórico. Algumas destas opções têm a ver com influências literárias, outras com traços de personalidade.
Também tem mais interesse pela melancolia do que pelo lirismo, ainda que não sejam registos antagónicos?
Sim, a melancolia é um sentimento muito presente nos meus poemas e, em geral, em tudo o que escrevo. É até um pouco independente do que acontece. É como ser pessimista, que também sou, mesmo quando as coisas estão a correr bem.
O pessimismo não está indexado à forma como a vida está a correr. Está ligado à ideia, que não pode deixar de ser pessimista, de que tudo acaba. Não só a vida, mas tudo.
Estes poemas são atravessados por coisas que acabaram, por prédios que foram demolidos, relações familiares que já não existem, por amizades que terminaram. Nesse sentido, o livro tem como fio condutor a memória e o tempo. São conceitos que se tocam, mas não são os mesmos.
A memória é uma viagem no tempo, é certo, mas o tempo é menos subjetivo do que a memória. O tempo passa objetivamente, envelhecemos e morremos, as casas degradam-se. E depois há o que valorizamos e o que esquecemos.
Referiu há pouco os laços familiares. A ideia de pertença é importante para si?
Foi muito importante até determinado momento, hoje menos. Os poemas de infância e de adolescência, por exemplo, são quase todos sobre férias. É uma aldeia de irmãos, para usar um título do António Osório de que gosto muito. Não tenho irmãos, mas tive um grupo alargado de pessoas que marcaram afinidades, convicções, uma identidade.
Numa crónica recente falo um pouco disto, dizia que o que dá solidez a uma família são as pessoas mais velhas e as pessoas mais novas, estas muito iguais entre si. Quando as pessoas mais velhas desaparecem e as que já não são assim tão novas começam a diferenciar-se, a família vai-se deslassando.
Não é uma regra, é um pouco a minha experiência que poderá ser generalizada a outras relações familiares. Por isso, tirando a secção Verdadeira Herança, dedicada ao meu pai, os poemas familiares hoje são menos frequentes.
Os poemas que ficaram neste volume foram reescritos?
Para este volume fiz pouquíssimas revisões, apenas de pormenor. Escrevo sempre à mão e passo a computador, com algumas alterações. Depois, sim, os poemas que escolho para entrar num livro são trabalhados, revistos, revisitados. E, finalmente, há uma parte significativa do poema que depende de o ver em página.
E ver um poema numa página de um livro, já em prova, é mais determinante do que o ver num A4 solto. Mas estas já não são revisões muito extensas, talvez porque os poemas que chegam às provas são os mais trabalhados.
Também escreve as suas crónicas à mão?
Não, só os poemas. A maior parte da prosa é trabalho, com prazos apertados. Não faz sentido ter várias versões. Na poesia, o computador nunca funcionou. Já tentei, mas sinto que a poesia precisa da caligrafia. E não é por prazer estético, pois tenho uma caligrafia horrível.
Os poemas e as crónicas são uma forma de se expor ou de se esconder, tendo em conta o jogo com a biografia, os interesses, as obsessões?
Não tenho interesse em expor-me ou em esconder-me. Não penso nisso. Sei que podemos dizer tudo sobre nós próprios mas não sobre os outros, uma preocupação quase deontológica. Mas pelas crónicas – que têm muito mais feedback do que os poemas – percebi que um texto totalmente impessoal pode ser lido como uma confissão, e o contrário também.
Já publiquei duas ou três crónicas muito confessionais, ao ponto de ficar arrependido de as ter escrito, e ninguém ter dado pela intimidade. Basta às vezes não usar um “eu”. Também já tive interpretações delirantes, longe da minha biografia ou intenção. Mas faz parte: ninguém domina, e ainda bem, o que os leitores leem, ainda mais na poesia.
Estes 25 anos de poesia são também de crónicas nos jornais, estas ainda mais antigas. Nunca sentiu a necessidade de construir uma “persona”, uma máscara pública?
Tive grandes preocupações com esses assuntos quando tive um blogue, porque aí publiquei textos muito confessionais e escrevi coisas que não devia ter escrito. Mas tirando esse exemplo muito específico, nada me leva a construir uma “persona”. Há, no entanto, um aspeto que me interessa muito.
As crónicas e os poemas são completamente diferentes. Os poemas são relativamente parecidos uns com os outros, há duas ou três tipologias de poemas que sei e quero escrever. Nas crónicas, até pela âncora temática, tento escrever sobre assuntos completamente diferentes.
Dizem-me muitas vezes: “Nunca sabemos sobre o que é que vais escrever”. Gosto muito dessa ideia. E é intencional. Um cronista que escreve sempre o mesmo texto não é muito interessante, embora fazer o contrário também não seja garantia nenhuma.
A exposição é ainda maior se somar à poesia e à crónica a participação televisiva, há mais de dez anos, no Governo Sombra e agora no Programa Cujo Nome Estamos Legalmente Impedidos de Dizer. É possível essa naturalidade, essa ausência de construção para o exterior?
O que eu gosto de fazer é de escrever. O resto que faço não são coisas de que não gosto, mas faço-as por outras razões. Esses dois programas começaram por ser de rádio e são feitos por amigos com quem me divirto. Além disso, gosto de falar de política.
Claro que quem aparece na televisão é muito mais conhecido apenas por aparecer na televisão. Entre essa exposição e a visibilidade da poesia há uma disparidade que às vezes me desagrada mas que é da natureza das coisas. Fico agradado quando alguém diz que me reconhece sem ser da televisão, não por ter um constrangimento com a televisão, mas porque o que valorizo mais é a escrita.
Ao fim de 16 anos de comentário político, o que continua a surpreendê-lo na política?
O meu interesse pela política é exterior. Nunca quis fazer política partidária, ativa ou como militante. As poucas coisas que fiz foi por amizade ou por proximidade com as pessoas. É um interesse mais teórico do que prático. Mas no programa não discutimos necessariamente a substância da política quotidiana, antes nos fixamos em frases, mal-entendidos, contradições. Acaba por ser um programa quase linguístico, um programa sobre coisas que os políticos dizem. E, nesse sentido, a surpresa é constante.