É um projeto singular de quem tem orgulho numa vida feita de livros. É, por isso, uma casa de papel, que tanto veste as roupas de um escritório pessoal, como as de uma livraria. Nas traseiras da Avenida de Roma, em Lisboa, chama-se de “Os Livros do Jorge” e tem todos os livros que Jorge Reis-Sá já escreveu e editou.
Pela sua diversidade, é o melhor retrato de um percurso que, para o bem e para o mal, como reconhece, toca em vários territórios: a edição, a poesia, a prosa e o ensaio.
Na prateleira dos livros acabados de chegar está Prado do Repouso, volume em que recolhe 25 anos de poesia. Não se trata de uma poesia reunida, antes de um olhar sobre a sua produção poética, arrumada em função das várias vozes que foi explorando.
Inclui ainda um texto em prosa, dedicado ao seu pai, que rima com alguns dos poemas que não poucas vezes refletiram sobre a paternidade e a orfandade. Como acontece com os seus títulos mais recentes, assim como as reedições dos mais antigos, leva a chancela da sua nova editora, A Casa dos Ceifeiros, que criou sobretudo para se publicar, embora também já tenha lançado títulos de Eucanaã Ferraz, Fernando Pessoa, Cory Taylor e Françoise Sagan.
Mais do que recordar duas décadas e meia de versos, Prado do Repouso pode revelar-se uma despedida, já que deixou, há alguns anos, de sentir o impulso da poesia, andando hoje mais pela prosa. Um dos seus últimos livros de histórias curtas, A Hipótese de Gaia, recebeu aliás o Grande Prémio de Conto Branquinho da Fonseca da APE, em 2023, e para o futuro estão previstos muitos outros projetos. Todos de gestação lenta, uma marca da sua criação literária.
À semelhança do editor (foi fundador das Quasi, passou pela Ulisseia, colabora com a Imprensa Nacional Casa da Moeda e o Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto), o escritor, nascido em Vila Nova de Famalicão, em 1977, gosta de construir cada livro com tempo.
No posfácio a esta poesia reunida, que assinala 25 anos de percurso poético, fala em lápides e não dá como certo que a poesia continue. É o fechar de um ciclo?
Muito provavelmente. Em 2009, organizei com o Rui Lage uma antologia de poemas portugueses, com 2152 páginas (ainda não esqueci o número) que me obrigou a ler se não toda, muita da poesia do século XX. Li coisas muito boas, outras menos boas, algumas más: foi uma overdose de versos e de poesia.
Ainda em 2009 escrevi os sonetos do livro Mulher Moderna que lancei em 2011, mas desde então devo ter escrito uma meia-dúzia de versos. Chegava ao poema e ficava tolhido, ainda hoje fico. Lembrava-me de tanta coisa que tinha lido que ficava assoberbado. E mantém-se. Não sei muito bem o que hei de fazer, como continuar uma ideia, como escrever poesia. É claro que outras coisas meteram-se pelo caminho e não ando a forçar.
Diz-se muitas vezes que antes de se ser escritor (ou poeta) é preciso ser-se um bom leitor. Haverá limites para essa curiosidade e aprendizagem do Outro?
Não há limite, ler poesia é um vício que faz bem. O problema foi mesmo a overdose, muito em pouco tempo. Não tive oportunidade de ser permeável às afinidades eletivas, aprofundar o que verdadeiramente queria ver, conhecer e pensar melhor. Não houve o ler e o responder com escrita própria.
Não houve síntese nesse processo?
Exato. Houve uma compreensão muito grande e forte que fez com que ficasse sem pé. E nunca mais o recuperei. Mas também não estou preocupado com a recuperação desse pé.
Mas houve um tempo em que a poesia era um exercício diário?
Não direi diário, mas houve um altura em que a poesia era o centro da minha escrita, o principal. Ou seja, na literatura e no que eu podia podia escrever, interessava-me mais um trabalho poético do que ficcional, ou no campo da crónicas e do ensaio, que entretanto também desenvolvi. O livro de 2009 desconstruiu esta relação e a poesia começou a ficar relegada para outro sítio.
Ainda no posfácio, refere-se a 2009 como o ano mais complicado da sua vida…
E foi, com o fecho das Quasi e a mudança para Lisboa com tudo o que isso acarretou, além de muitas outras questões pessoais. Mesmo os poemas do livro Mulher Moderna, escritos em sucessivas viagens de comboio, são uma projeção: eu não queria ser aquele sujeito poético quando tivesse a sua idade (cerca de 40).
Outro lugar-comum diz que os momentos difíceis são mais propícios à escrita e à poesia…
Não concordo nada com essa ideia. Há uns anos, um amigo escritor passou por uma dificuldade pessoal muito forte e eu disse-lhe para aproveitar para escrever, mesmo não acreditando no conselho. E a resposta dele só reforçou a minha convicção: “Tu bem sabes que não se escreve no meio da tempestade, só depois”. Quando se vive momentos complicados, não há poesia ou ficção que te salve. Apenas tens de os ultrapassar.
Nesta poesia reunida inclui os primeiros poemas. Quando se deu a sua aproximação à poesia?
A minha “história” enquanto escritor de versos começa no 7.º ano, quando, por preguiça, em vez de uma redação, escrevi um poema. Começava: “Se eu pudesse mudar o mundo…” [risos]. Tive um “Elevado” com “e” maiúsculo, porque também os havia em minúsculo [risos]. Foi um impulso que se associou à conquista da mulher amada, transformando-se depois numa forma de olhar e trabalhar com o mundo.
Ganha depois um prémio em 1998…
… que me dá um apoio para publicar um livro. Saiu fraco, como seria de esperar. Uma vez perguntaram ao Manuel António Pina se publicaria agora (na altura da entrevista) o seu primeiro livro e ele respondeu: “Não, ainda bem que o publiquei quando estava a começar.” É uma frase lapidar sobre muitos primeiros livros, que só fazem sentido no momento em que surgem.
Esse primeiro livro reforçou a relação com a poesia?
Sim, muito. E a ele seguiu-se o encantamento com a descoberta de mais poetas, novos versos, outras personalidades literárias. Neste âmbito, a edição também foi muito importante. O primeiro poeta maior que conheci pessoalmente como editor foi o António Ramos Rosa, uma figura encantadora a vários níveis.
Ao olhar para estes 25 anos que pontos de viragem encontrou?
A organização do livro espelha um pouco as várias fases da minha poesia. Começa com uma voz de juvenilia, representada pelos volumes mais imberbes, muito devedores da leitura de Eugénio de Andrade, mais líricos e metafóricos, sobre o amor e o mar.
Por volta de 2003/2004, começo a escrever uma poesia mais discursiva e narrativa, com histórias lá dentro, que desemboca em Biologia do Homem, aquele que considero ser o meu primeiro livro. Foi a descoberta um sujeito poético mais confessionalista, ligado às minhas circunstâncias, quase terapêutico, o que foi muito importante para mim.
Quando esse momento se esgotou, escrevi uns textos em que me aproximava quase de um teatro em verso. Nos poemas mais recentes há talvez um regresso ao confessionalismo. São vozes diferentes que, ao correr dos anos, fui conseguindo identificar. E a consciência das suas diferenças permitiu-me arrumar esta poesia reunida.
O editor também ajudou nessa reflexão?
Vai ajudando. Quando uma pessoa também é editor tem uma consciência um pouco mais aguda do que faz. E eu acumulo ainda outra dimensão: edito-te. Há vários casos semelhantes na nossa poesia, como também há poetas-editores que nunca publicaram nas suas chancelas. Mas ao editar-me sei que não vou ter o crivo de outro editor. Por isso, quando estou a escrever ou a preparar um livro tenho de me pôr noutra pele para tentar compreender se aquilo faz ou não sentido (incluindo o de editar).
Nunca procurou publicar noutras editoras que não a sua (Quasi e A Casa dos Ceifeiros) ou naquela em que trabalhava (Ulisseia)?
Na poesia, não. Na prosa essa possibilidade ou opção surgiu naturalmente. Também é preciso ter a noção de que do ponto de vista editorial seres publicado é quase um favor que te fazem. Ninguém entra na edição de poesia para fazer dinheiro ou a pensar que vai iniciar um negócio. Não estamos a falar de mercado. E por conhecer bem o mercado não me sinto à vontade de perguntar a um editor se quer publicar a minha poesia.
A prosa foge a essa dinâmica?
Sim, tem uma dinâmica de mercado diferente e há até uma dimensão de marketing e de venda do livro e do autor que faz com que seja bom ter um editor. Além disso, na prosa, até certa altura, senti que precisava de um editor, alguém que lesse o original e me sugerisse cortes ou alterações. Mas também na prosa, há cerca de 8 ou 9 anos, depois de publicar A Definição do Amor, talvez por um certo desencanto, percebi que não valia a pena.
Porquê?
Porque o meu percurso como escritor está tolhido pelo meu percurso editorial. Quer isto dizer que o meu trabalho é ser editor e só depois escrevo. Nos tempos atuais, ao não teres um compromisso com a escrita e com tudo o que lhe está associado, como ir a eventos, fazer lançamentos, participar em encontros literários, dificilmente consegues vingar.
Hoje escrever não é só escrever?
Não é só escrever. Como editor também o sei. Dizendo-o meio a brincar, os escritores que agora vendem verdadeiramente livros são pessoas que passam metade do dia a escrever e a outra metade a dizer que escreveram. Ou a fazer projetos paralelos e a construir uma carreira. Nada do que digo é pejorativo, não estou a criticar, quando muito tenho alguma inveja disso, pois é um percurso que eu talvez pudesse ter feito, mas que por várias razões não aconteceu.
É uma profissionalização da escrita?
É precisamente isso. Há cerca de 15 anos, na altura dos blogues, escrevi um texto que teve um feedback brutal justamente porque era uma resposta às pessoas que diziam que não dava para viver da escrita. E já na altura defendia que viver da escrita não era escrever um romance e ficar sentado.
Também passava por o promover, escrever um peça de teatro, um ensaio para uma revista, um conto, etc, etc. O que não era possível há 15 anos, e continua a não ser possível hoje, é ser lírico a viver da escrita. Muita gente acusou-me de me estar a vender ao mercado.
A Casa dos Ceifeiros surge como resposta a essa realidade que tão bem conhece?
Sim. É a minha editora, na qual edito e me edito. Em relação aos meus livros, edito-os até de uma forma obsessiva, na medida em que cada livro demora anos a ser preparado. Andei a pensar no Prado do Repouso durante, pelo menos, três anos. Com A Hipótese de Gaia passou-me o mesmo, a que acrescentei muitos elementos extra, como fotografias, árvores genealógicas ou outras curiosidades. E faço-o também como um divertimento.
Ter uma editora para publicar os seus livros é assumir um espaço de liberdade?
Totalmente. É possível controlar tudo: a capa, o tipo de letra, o papel. Depois não vende nada, mas o processo passa todo por mim. É criar um projeto editorial que também é um projeto de escrita. Por vezes, pode começar por uma capa, noutras, pelo texto.
Sentiu que o Grande Prémio do Conto Branquinho da Fonseca da APE que recebeu, em 2023, com A Hipótese de Gaia legitimou a opção da auto-publicação?
O prémio foi muito importante por duas razões. Por um lado, revelou uma validação dos pares, o que para mim foi importante justamente por eu ser muita coisa. As pessoas da escrita acham que sou editor, as da edição veem-me como escritor, uns acham que sou biólogo e por aí em diante.
Por outro lado, também legitimou o processo de que tenho vindo a falar, de ter o controlo de tudo. E é curioso que, na sua justificação, o júri destacou a organização do livro, a sua lógica. Acredito que, em qualquer área artística, se nota quando és pertinente e relativamente obsessivo e quando és mais gratuito.
A Hipótese de Gaia é um dos muitos livros de prosa – romances, contos, ensaios – que tem publicado. A poesia não se ressentiu com o surgimento da prosa?
As primeiras tentativas de prosa a sério são de 2001, mas nunca ofuscaram a poesia. Na altura em que a poesia ainda era o centro do que eu escrevia, sempre que me desvia ela está ali ao lado. Na verdade, eu sentia que, na poesia, sabia o que estava e o que queria fazer no meio das lutas poéticas do início do século XXI. Hoje até percebo que, do ponto de vista estético, estava de um lado que não era o meu.
Em que sentido?
Vou parecer um velho a falar, mas não sei se a oposição entre lirismo e confessionalismo ainda faz sentido, não acompanho tanto o que se faz agora. Mas no início do século XXI era uma oposição forte. Era até mais fácil arrumar alguns poetas em cada lado.
Em antologias que organizei acho que fiz isso com facilidade, só que não me inclui. Eram duas formas de olhar o mundo, de editar, de ler e pensar a estética literária que se opunham, até com bastante polémica. E a principal diferença entre as Quasi e, digamos para simplificar, a Averno era justamente a forma como se via a edição de poesia.
Nas Quasi achávamos que a poesia era só uma, como dizia o João Cabral do Nascimento. E isso quer dizer que, enquanto editores, não professávamos uma estética. O outro lado achava, com toda a legitimidade, o contrário, que tudo o que não seguisse a estética escolhida devia morrer. Eu só não concordava com uma coisa.
Com o quê?
Com a agressividade usada contra quem publicava com outros critérios. Todos têm o direito a publicar. Não acho que se deva cancelar por motivos estéticos. E a diferença passava também pelas opções editoriais, como as capas. As da Quasi apresentavam-se berrantes. A ideia era “vamos pôr a poesia ao lado dos outros livros”, fugindo a uma lógica de gueto, que, sublinho mais uma vez, é totalmente legítima.
Mas onde é que a sua poesia ficava no meio dessa polémica?
Essa é a questão. Apesar do que nos diferenciava nas nossas opções editoriais, olho para a minha poesia e vejo-a mais próxima da do Jorge Gomes Miranda, Manuel de Freitas ou João Miguel Silva. Apesar da amizade e da ligação editorial que tinha com o Valter Hugo Mãe ou do Jorge Melícias, não partilhava a poesia deles, mais metafórica e imagética. A minha poesia navegava mais pelo quotidiano.
Para quem veio de uma forte influência do Eugénio de Andrade, o encontro com o quotidiano foi uma revolução?
Não sei se foi uma revolução, porque foi tudo muito natural. Sinto que foi mais um encontro, a descoberta da minha voz. O Vasco Ferreira Campos, um poeta que desapareceu mas que tem um livro de que gosto muito, O Coração Sabe, dizia: “Na poesia tens de ser honesto”. A honestidade, em poesia, é um conceito com muitas nuances. Julgo que ele não se referia apenas à dimensão confessional, mas também à honestidade que te leva a escrever o que é natural em ti, sem forçar o que pode ser mais conveniente.
Mas como surgiam os poemas dessa fase? Da observação do dia?
Era sempre uma construção, como se estivesse a escrever um conto. Tinha uma ideia para um verso, para uma situação, para uma história e o poema nascia a partir daí. Os poemas tinham algum, pouco, trabalho de correção, mas tinham muito trabalho prévio à escrita. Pensava muito sobre o que queria escrever ou sobre a lógica do poema.
Nunca foi um poeta de impulsos?
Não. Sempre tive um caderno para anotar um ou outro verso, para fixar uma ideia, mas o poema era elaborado sobretudo na cabeça, juntando peças e encontrando um fio condutor. Se calhar a poesia foi-se afastando porque deixei de pensar nessa construção. Os poemas mais recentes tentam recuperar essa dimensão de narrativa, sempre a partir de situações concretas. A poesia para mim sempre foi uma coisa que requer muito tempo.
A prosa é mais fácil de pensar enquanto se escreve?
Nem por isso. A prosa também é um trabalho demorado. Ainda assim, sei perfeitamente quando estou a escrever prosa e quando estou a escrever poesia, mesmo quando esta é narrativa. O processo é sempre o mesmo, pensar longamente, mas a forma de entrar na prosa e na poesia são diferente. Não sei explicar muito bem.
Tanto num caso, como no outro, não sei se consigo estar à altura das expectativas que essa longa reflexão prévia cria. Mas quero sentir que pus no livro todo o trabalho possível que estava ao meu alcance. De outra forma, o livro torna-se, como disse há pouco, gratuito e sem sentido.
Há algum verso seu que resuma a sua abordagem à poesia?
O Jorge Luis Borges dizia que qualquer poeta medíocre tem dois versos bons. Eu também [risos]. No meu caso são: “Vou para casa esquecer que parti”. Escrevi para um sujeito poético que não sou eu, nem para as minhas circunstâncias. Mas é um verso que me diz muito. No início da Quasi, o Valter e eu falávamos muito de poesia.
A certa altura ele argumentava que poemas com a palavra casa são fáceis, porque é uma palavra, uma imagem e um espaço com muito significado. E tinha razão. É uma palavra linda que carrega tudo o que somos. E associá-la à ideia de alguém que quer esquecer que um dia partiu agrada-me particularmente.