António Cândido Franco (ACF) publicou o ano passado a biografia de Luiz Pacheco (LP): O firmamento é negro e não azul. A Vida de Luiz Pacheco. Lemos deste autor o que todos leram, os textos A Comunidade, Teodolito e O Libertino Passeia por Braga, a Idolátrica, o Seu Esplendor, mas não imaginávamos o drama humano e estético que esses livros abrigavam. Tínhamo-lo em conta, a LP, apenas, como um surrealista “libertino”, desconhecíamos que a sua vida fora uma autêntica descida voluntária ao inferno. Biografia de ACF é a prova provada de que, seguindo a atual moda (que felizmente está passando) de separação total entre o autor e a obra, o leitor é lançado numa literatura sem alma, sem poesia. A biografia de ACF sobre Luiz Pacheco devolve-nos, em estreita harmonia, tanto o texto como o que se encontra no seu fundo humano, o sangue, a carne, os ossos, os nervos de cada texto, forçando-nos a entender tanto a humanidade do autor como o seu ponto de vista literário, deixando para trás uma visão burocrática do texto.
De um modo genérico, o topos literário da “descida aos infernos” ou catábase foi vivenciado por três autores portugueses no século XX não presentes no importante artigo de A. Rosado Fernandes, “Catábase ou a descida aos infernos” (Coimbra, Humanitas, vol. XLV, 1993): António Telmo (1927-2010), que a pensou filosófica e iniciaticamente; José Régio (1901-1969), que, com uma vida regular em Portalegre, apenas a dramatizou em duas peças de teatro, Jacob e o Anjo e Benilde ou a Virgem Mãe, e Luís Pacheco (1925-2008), que a experimentou e sofreu em vida; integrados em Orpheu, revista de 1915 que tinha por projeto extrair a Arte do inferno (a vida normal republicana e positivista), Fernando Pessoa, o próprio, esotérico, que teorizou e poetizou a “descida aos infernos”, e Mário de Sá-Carneiro, que a viveu em Paris, suicidando-se.
Por questão de espaço, aqui apenas nos interessa LP. Classificar LP como escritor libertino significa que nos seus textos e nos comportamentos individuais revela um horizonte social desregrado, moralmente dissoluto, centrando-se não raro nos prazeres carnais, nas sensações eróticas, ausente do cumprimento das regras gerais da sociedade. Neste sentido, LP é um libertino, como a si próprio se intitula. Porém, o caminho que a sua existência vai traçando, tão perfeitamente evidenciado por ACF, ultrapassa a mera libertinagem e ostenta-se como um grito de revolta contra tudo que exprima uma sociedade patriarcal fundada na trilogia salazarista do Pai, Padre, Patrão. O seu combate contra um pai funcionário público, burguês, apreciador de música (LP quase assassina o pai, já velho, isolado em Belas), o corte total com a Igreja Católica (a mãe) e o corte total com o emprego do Estado, tornando-se um ser livre, sem meios de subsistência, mas livre, desenha o esboço de uma personagem histórica acrata, que, mais do que um libertino (que se centra muito na questão sexual), mais do que um anarquista, não aceita qualquer forma de poder que não provenha da sua consciência. Porém, a LP falta a libertação da esfera da Política, não por acaso aceitará participar no congresso dos escritores que apoiavam Salazar e, mais tarde, em 1975, participará em manifestações da extrema-esquerda e, depois integrará as hostes do PCP. Permanece ainda um nacionalista, não cortando com o conceito de Pátria. Foi pena, mas talvez fosse pedir-lhe de mais. Os cortes ontológicos que ele cometeu já foram absolutamente épicos (individuais, mas épicos).
O neo-abjecionismo , que LP perseguia, é menos uma corrente literária e mais uma forma de vida onde se casam existência e literatura, uma vida em forma de degradação e aviltamento que geram uma literatura abjeta: a união sexual com rapariguinhas, logo trocadas por outras, numa infinda orgia (hoje seria considerado pedófilo, embora alegasse que tal só seria com crianças com menos de 11 anos), os filhos dados para a adoção ou entregues ao cuidado de amigos, a união sexual ocasional com rapazinhos, o “cravanço” (roupa, dinheiro, o subterfúgio do recurso ao capitalista Vinhas) como forma de subsistência, a ameaça permanente da prisão, depois o convívio com esta, a ausência de uma habitação permanente, de um traje “normal”, forçando a que os outros lhe chamassem “palhaço” e o identificassem como tal quando passeava uma galinha pelo Chiado, o vício do álcool durante cerca de 20 anos, degradando-lhe o corpo e não o deixando ser livre… Com António Maria Lisboa morto e Pedro Oom dissidente, o Abjecionismo, pensado como resistência e alternativa à sociedade capitalista e comunista, ficou-se pela existência voluntária de LP, pela relevância de certos aspetos da vida de Cesariny e possivelmente pela reclusão de H. Hélder, embora o léxico poético deste seja muito mais complexo do que dos companheiros do café Gelo. Verdadeiramente, não se ofereceu como alternativa ao neorrealismo, cuja coerência dos seus defensores acumulou centenas de anos de prisão política.
Percebe-se que se LP tivesse tido um convívio mais forte com livros de filosofia ou de sociologia teria criado uma teoria ou um sistema explicativo da sua opção de vida. Historicamente, não basta estar contra e sofrer, como o capítulo 12 tão bem evidencia. Seria preciso explicitar por que se tomou essa opção dolorosa, como o fez Nietzsche, que tanto o influenciou. Se “firmamento” era “negro” para ele, e era-o de facto, seria possível torná-lo “azul” para os vindouros, deixando o esboço de uma doutrina como esperança de vida ou de luta Ou estamos a iludir-nos? De sublinhar ainda a sua veia de editor, sustentando a Contraponto, alma editorial do surrealismo em Portugal.
A biografia de ACF (não lemos a de João Pedro George, vamos agora lê-la) é uma bela biografia, bem fundamentada, rigorosa, o que afirma ou deduz prova por textos de LP ou por testemunhos coevos, temporalmente cronológica, mas bem concatenada na relação entre os tempos. Para o leitor, fica clara a personalidade do biografado, claras as opções existenciais. Não é uma biografia neutra, constata-se com facilidade que o autor concorda com o projeto de vida de LP. Estamos certos, LP ficaria feliz com esta sua biografia.
Se literariamente ACF se realiza hoje a escrever biografias (Agostinho da Silva, Luiz Pacheco, Mário Cesariny), não deve, porém, descurar o romance, sobretudo o histórico, de que era um singular autor na primeira década do século, com uma teoria específica sobre este género literário. Dos seus cinco romances, gostámos especialmente de A Herança de D Carlos (2009). No futuro, gostaríamos de voltar a ler um seu romance.