Máscaras, luvas, distância de social, etiqueta respiratória e muito cuidado. Reconhecemos nas personagens de Em Todas as Tuas Te Encontro os nossos próprios gestos, os hábitos que fomos forçados a integrar na nossa rotina, no nosso dia-a-dia, até no nosso inconsciente. Para Paulo Faria, um dos mais destacados tradutores portugueses, a literatura tem o poder de nos confrontar com o passado e com o presente e de criar um espaço para os entendermos e nos revermos.
Nascido em Lisboa, em 1967, Paulo Faria formou-se “acidentalmente”, como diz a brincar, em Biologia. Mas é à Literatura que dedica a sua vida. Desde logo oferecendo-nos, em português, obras de grandes autores, como George Orwell, Jack Kerouac, James Joyce, Don DeLillo e Cormac McCarthy. Com História em Duas Cidades, de Charles Dickens, recebeu, aliás, o Grande Prémio de Tradução APT/SPA. Mais recentemente, abriu um novo capítulo nessa relação. Publicou, em 2016, o seu primeiro romance, Estranha Guerra de Uso Comum, a que se seguiu, em 2020, Gente Acenando para Alguém que Foge. Em Todas as Tuas Te Encontro, o seu terceiro romance, uma edição da Minotauro, retoma alguns dos seus temas de eleição, como a Guerra Colonial e a oposição à ditadura durante o Estado Novo, para nos dar o retrato de duas famílias confinadas e de uma jovem artista, a verdadeira protagonista do romance, que quebra barreiras e convenções.
Jornal de Letras: “A palavra é a nossa única vacina”, diz Fernando Cabral Martins no posfácio a este romance. Foi essa ideia (ou convicção) que o levou à escrita deste romance?
Paulo Faria: Sem dúvida. Confrontados com o terramoto da pandemia, cada qual reagiu à sua maneira. Todos tivemos de descobrir um modo de lidar com o medo, com a angústia, medo e angústia esses que, parece-me, já vinham de trás, mas que esta pandemia veio acentuar. A palavra, e em especial a palavra escrita, é, parece-me evidente, a nossa única vacina, a nossa única salvação.
Ainda Fernando Cabral Martins: “A emoção vai mais fundo do que o pensamento e a análise.”Vê a literatura como uma forma de catarse, sobretudo nestes tempos de estranheza, incerteza e pandemia?
A palavra catarse significa purificação, e é precisamente isso que a literatura nos proporciona. Antes de mais nada, a quem escreve, que é talvez o mais importante. Escrever obriga-me a organizar as emoções, a domesticá-las, em certa medida, porque ao escrever as emoções deixam de ser uma nuvem informe e cristalizam-se em frases coerentes. E então, sim, posso soltá-las na página e purificar-me. É assim que interpreto essa bela frase de Fernando Cabral Martins.
Em concreto, quando decidiu escrever este romance? Ele reporta-se aos primeiros meses da pandemia, nomeadamente à quarentena de março, abril e maio. Foi nesse momento?
Tenho uma filha que estava a estudar em Itália quando a pandemia surgiu. Ela regressou a Portugal em março, praticamente no último dia em que os aviões levantaram voo de Itália. Conversámos muito, ela contou-nos o que se passava lá, uma realidade que, para nós, era ainda uma coisa distante. Pouco depois, foi a nossa vez de confinar, caiu-nos em cima esta nuvem negra. Senti uma imensa necessidade de escrever sobre o que via e sentia, e o ponto de partida da minha história foi este: uma jovem que regressa a casa dos pais, vinda de Itália, em plena pandemia, e cujo olhar vai comandar toda a ação.
Hoje, tendo os números atingido picos impensáveis, seria mais difícil escrever este romance?
Publiquei um seu esboço em fascículos, nas páginas do Público, durante o primeiro confinamento, quando começaram a morrer pessoas de Covid em Portugal. Lembro-me perfeitamente de ler a notícia da primeira morte. E lembro-me de pensar (e incluí no romance um diálogo em que exprimo essa ideia) que o ato de escrever ficção ou poesia é sempre um gesto de afirmação individual, que vai ao arrepio dos movimentos e das pulsões coletivas. E que se arrisca, portanto, a ser entendido como egoísmo. Portanto, seria mais difícil escrever agora este romance, sem dúvida.
Como foi essa sua primeira quarentena? Para alguns, incluindo escritores, ler e escrever foi difícil…
Senti-a como o culminar de um processo de esgotamento das alternativas, que há muitos anos marca o nosso quotidiano. Um mundo saudável é um lugar onde podemos fazer as coisas de muitas maneiras diferentes, onde podemos escolher a melhor alternativa de entre um vasto leque de hipóteses. Se nos dizem que só nos resta salvar a economia ou salvar a saúde das pessoas, ou seja, escolher o mal menor, alguma coisa está muito mal. Para chegarmos a este beco sem saída, é porque durante anos e anos fomos eliminando toda uma série de alternativas que, aqui chegados, nos permitiriam trilhar outros caminhos. Que nos permitiriam salvar a economia (que teria de ser uma outra economia, evidentemente) e também a saúde das pessoas. O que mais me oprimiu e deprimiu foi esta sensação de encurralamento.
A sua descrição familiar e social do que tantos portugueses (e não só) viveram na quarentena é muito fiel. Tentou ser o mais realista possível?
Escrevo para tirar a normalidade às coisas. O nosso olhar habitua-se a tudo. Entramos em casa e já nem vemos aquele quadro, aquele móvel. É por isso que conseguimos andar em casa de noite, no escuro, quase de olhos fechados. As coisas existem e já nem precisamos de as ver. E a rapidez com que se instalou esta nova normalidade arrepiou-me. Tentei ser realista para exprimir o meu medo de que doravante passemos a viver assim. Tenho muito medo do vírus, mas também tenho muito medo desta nova normalidade, que é um acentuar da bipolaridade do mundo em que já vivíamos.
Nesta pandemia, também se pode aplicar a máxima de Tolstoi: cada família deverá lidar à sua maneira com a pandemia. Foi um desafio tentar ser particular e universal ao mesmo tempo?
Hemingway respondeu à questão da universalidade e da particularidade quando disse que nenhum bom escritor prepara os seus símbolos de antemão e escreve acerca deles, mas que de um bom livro fiel à vida podem emergir símbolos estimulantes. Escrevi sobre o que vi, sobre o que senti, sobre o que viram e sentiram os que me rodeiam. Se alguém se identificar com as minhas angústias e interrogações, tanto melhor.
O que espera do leitor ao ler uma história tão familiar?
Sinceramente, ao escrever não penso no leitor. É essa a grande diferença entre o meu trabalho de tradutor e o meu trabalho de escritor, aliás. Quando traduzo, estou sempre a pensar no leitor. Quando escrevo, o leitor desaparece. O único leitor sou eu. Agora que o livro está publicado, espero que quem o leia se sinta incomodado, mas também que sinta esperança. Li uma vez uma reportagem que me marcou, sobre uma mulher que perdera o filho. No velório, uma mulher que ela não conhecia veio falar-lhe e disse-lhe: “Pode não acreditar, mas um dia vai sorrir de novo, vai tornar a sentir-se feliz.” Embora por natureza eu não seja otimista, espero que o meu romance possa ser uma voz assim nestes tempos cinzentos.
Curiosamente, a pessoa que melhor lida com a pandemia e o medo do vírus é a Sónia, uma artista plástica. E também um antigo militante anti-fascista. Um manifesto?
Se manifesto há, é apenas este: não podemos travar somente uma luta e adiar todas as outras. Escolhi como protagonista uma artista plástica, porque gostava muito de saber pintar e nunca cheguei a aprender. E gostava de fazer performances em público, mas não tenho coragem, sou um bocado envergonhado. Portanto, neste romance tentei, através desta personagem, fazer coisas que provavelmente não farei na minha vida. Quanto ao militante anti-fascista, conheço uma mulher que lutou contra o fascismo e me contou histórias fabulosas, que achei fazia todo o sentido integrar, algumas, neste enredo. E as coisas foram-se encaixando naturalmente.
Há no romance algumas passagens que hoje nos fazem sorrir, como o excesso de cuidado, as máscaras e as luvas, até o transporte do Álvaro na bagageira para evitar a contaminação. Vista de fora, esta pandemia tem bom material para o humor, a caricatura, o improvável?
Dentro de alguns anos, talvez consigamos sorrir ao recordar certos pormenores. Mas será um sorriso amargo, receio bem. O problema é que, neste momento, não conseguimos ver a pandemia “de fora”, porque estamos metidos nela até ao pescoço. E eu não quis escrever sobre a pandemia pondo-me “de fora”, até porque isso não seria possível, mas sim a partir do olho do furacão, em pleno terramoto, com todos os riscos e custos que isso implicou.
Apesar de se centrar no tempo recente, o romance não deixa de abordar temas que parecem interessar-lhe particularmente, como a Guerra Colonial, já presente nos seus dois livros anteriores…
Gosto de ir ao baú das memórias, mais ainda num romance assim, que se passa num momento em que parece ter-se cavado um abismo aos nossos pés e não conseguimos pensar em mais nada senão no presente. Houve duas pessoas muito importantes para a minha história, por me terem contado episódios da sua juventude que me ficaram às voltas cá dentro: a tal mulher de que já falei, que lutou contra o fascismo e esteve presa antes do 25 de Abril, e um veterano da guerra colonial, antigo comando da Guiné. Acho que, num momento catastrófico como o que vivemos, é fundamental revisitar o nosso passado, tanto coletivo como individual, para perceber como é que chegámos aqui. Não podemos cair no mesmo erro em que caímos na crise de 2008, em que nos culpámos enquanto indivíduos pelo que estava a acontecer. A propagação do vírus, nas proporções que atingiu, não aconteceu certamente por “culpa” do Zé ou do Manuel.
Gostava de ver uma maior reflexão, debate e até trabalho artístico sobre a Guerra Colonial?
O confinamento a que a Guerra Colonial foi remetida, a seguir ao 25 de Abril (reduzida à prosa e à poesia de Lobo Antunes, de João de Melo, de Assis Pacheco e de alguns mais), está finalmente a ser rompido. Ainda há pouco tempo saiu mais um excelente livro sobre o tema, Sinais de Vida – Cartas da Guerra, de Joana Pontes. As experiências da Guerra Colonial e do colonialismo estão agora a ser exploradas a fundo pela academia e pela arte. Se calhar resulta do facto de a geração dos filhos da guerra e do império, da qual faço parte, ter encontrado uma voz própria para falar sobre o tema.
Em todos os seus romances há uma personagem chamada Carlos que se confronta, sob diferentes ângulos, com a experiência colonial. É uma forma de assumir essa continuidade temática e literária?
Sim, esse Carlos em parte sou eu. Ou antes, em cada um dos três romances que escrevi até agora esse Carlos é uma parte de mim. A grande diferença, claro, é que os dois primeiros foram escritos na primeira pessoa, ao passo que Em Todas as Ruas Te Encontro foi escrito na terceira pessoa. O que é muito mais difícil, porque, ao escrever na terceira pessoa, o autor assume, em certa medida, que sabe tudo o que há para saber sobre a história e sobre as personagens, embora só conte uma parcela, a parcela que lhe interessa contar.
Com essa ressonância autobiográfica entende a literatura como uma forma de retrabalhar a vida e as memórias?
Há neste momento um grande debate em torno daquilo a que alguns chamam “autoficção”. Pela parte que me toca, quando pego num romance, interessa-me pouco saber, à partida, se o enredo se baseia em vivências pessoais do autor ou não. Interessa-me saber, isso sim, se o autor criou ou não um mundo onde eu deseje entrar e instalar-me, do qual queira fazer parte. Evelyn Waugh, ao criar as personagens de Reviver o Passado em Brideshead, baseou-se em homens e mulheres que conheceu pessoalmente, intimamente, até. Continuamos a lê-lo porque o romance se emancipou da vida da qual partiu. Espero que o mesmo aconteça nos meus romances. Que se emancipem da vida e que ninguém consiga distinguir entre aquilo que aconteceu tal como eu conto e aquilo que distorci, deformei ou inventei.
A epigrafe de Vassili Grossman que escolheu para o seu primeiro romance – “A literatura não é um eco. É à sua maneira que fala da vida e dos seus dramas” – sugere um conhecimento que só através da escrita se alcança…
Essa epígrafe é extraída de uma carta que Grossman escreveu em 1962 a Kruchtchev, num esforço para que o seu grande romance, Vida e Destino, que ele demorara 12 anos a escrever, fosse publicado, o que não aconteceu em vida de Grossman. Nessa carta, ele escreve uma coisa lancinante: “Tenho pelo meu livro a mesma afeição que um pai tem pelos filhos. Privar-me do meu livro é como separar um pai do seu filho.” E em Vida e Destino, uma personagem diz uma frase que adotei como lema: “Não acredito no bem, acredito na bondade.” E esta bondade, tento alcançá-la através da escrita, embora não seja fácil e esteja sempre a cair e a levantar-me outra vez.
Publicou os seus primeiros romances depois de um longo percurso de tradução. Que importância teve esse trabalho com a escrita dos outros?
Os meus romances, principalmente os dois primeiros, tiveram, como salientou há pouco, uma carga autobiográfica acentuada. Não me foi fácil escrevê-los. Acho que só consegui porque, antes disso, passei muitos anos a traduzir obras de grandes escritores, a familiarizar-me com a ferramenta da escrita, a afeiçoar-me às dificuldades, a persistir quando apareciam escolhos. Sempre temi escrever coisas insignificantes, acrescentar ao mundo mais livros inúteis ou sem valor. O trabalho de tradução deu-me, acima de tudo, confiança.
Fala-se muito do “traduttore, traditore”, mas não será justo falar também do “tradutor, criador”?
O debate é antigo, mas parece-me evidente a marca autoral na tradução. Umberto Eco dizia que a tradução é um processo de negociação antecedido de um processo de interpretação. Esta interpretação e esta negociação são gestos com uma marca criativa acentuada, na medida em que assentam em traços de personalidade individuais, intransmissíveis. No fundo, há tantas traduções quantos os tradutores. E o mesmo tradutor (eu próprio já o fiz), se traduzir o mesmo texto em momentos diferentes da vida, chegará a resultados diferentes.
Houve algum escritor que o influenciou particularmente?
Possivelmente, do ponto de vista do estilo, o escritor que mais me influenciou foi um autor que nunca traduzi. Trata-se de Mario Vargas Llosa. A estrutura dos romances dele é fascinante, com vaivéns constantes entre personagens, entre espaços e tempos diferentes, com vários diálogos intercalados. Ele leva isto ao extremo, num exercício de equilibrismo quase inconcebível. Li Pantaleão e as Visitadoras muito novo, e marcou-me muitíssimo.
E o que o levou à escrita literária?
Cresci a ouvir o meu pai ler em voz alta. Ele lia e nós, os filhos, tínhamos de o ouvir em silêncio absoluto, como se a leitura fosse uma cerimónia religiosa. O livro tornou-se um objeto fascinante e assustador, uma arma, uma marca de poder e de sedução, uma coisa mágica que nos encantava e paralisava. Ao escrever, quis participar neste processo, quis apropriar-me da varinha mágica e experimentar os seus efeitos devastadores.
No romance Em Todas as Ruas de Encontro sobressaem as mudanças temporais e de protagonistas da narração, com avanços e recuos e uma montagem muito cuidada. A literatura é o território da liberdade?
A literatura é, sem dúvida, o território da liberdade absoluta. Mas é uma liberdade estranha, porque há na escrita qualquer coisa de orgânico, que parece escapar à vontade do escritor. Lembro-me sempre de uma personagem de A Travessia, de Cormac McCarthy, um velho, que fala de um lendário caçador de lobos que montava as armadilhas em lugares improváveis. Quando o velho lhe pergunta porque é que ele monta a armadilha ali, e não dois metros ao lado, o caçador responde-lhe que não sabe explicar. Uma vez, o Hemingway contou que, quando estava a escrever Por Quem os Sinos Dobram, disse à mulher: “Acho que aquele sacana do Pablo ainda vai roubar os detonadores.” E ela respondeu-lhe: “O quê, não me digas que não sabes?…” E a verdade é que, até ao momento em que escreveu as palavras na página, Hemingway, muito provavelmente, não sabia.
Paulo Faria
Em Todas as Ruas Te Encontro
Minotauro, 134 pp, 13,90 euros