Li na juventude os livros de Fernando Namora com bastante maravilha, atento à forma como retratava a angústia dos médicos, notando a afirmação de uma grande pose social junto a um confronto com dúvidas existenciais e perigos morais. Retive sempre a impressão que me causou aquele Domingo à Tarde, feito de seu narrador cínico, pouco compassivo e misantropo assumido, e como, por licença poética, imaginei certa senhora Lispector analisada pela mente impertinente de um médico por quem se apaixona.
Voltei ao livro e recupero os sinais dessa impressão. Jorge, o narrador, ao saber que a paciente se chama Clarisse nota: “Um nome por coincidência misturado com certas leituras ignóbeis da minha adolescência”. Capítulos adiante, pensará: “que absurdo nome”. Não se diz Lispector (que se escreve Clarice Lispector, sem os dois s), mas a força da magnifica escritora brasileira é de tal ordem no mundo que já não nos podemos deparar com seu nome sem que, aplicado aos livros, sejamos como que sugados para dentro de seu magistério. Que violento juízo, então, esse que se afirma com o adjetivo ignóbil e que sublinharia o caráter pragmático, severo, e verdadeiramente cínico do narrador.
Há na Clarisse de Namora algo que vai até Bartleby, o homem que recusa ajustar-se, sem pretender qualquer prejuízo para os outros, relutante em cumprir o papel que se lhe espera e demanda. Clarisse, hospitalizada, leucémica, recusa tornar-se paciente, dissimulando as dores, mentindo, urgindo apenas em saber quando poderá ir embora. Jorge diz-lhe, em franco desaforo, que o hospital não é uma prisão, a porta está aberta.
Para mim, Namora escreve esta personagem fascinado, atraído pelo espírito desalinhado de uma mulher procurando manter a humanidade ao cair no precipício. E é mais do que brio, é a última altivez, a da presa que já capturada humilha seu predador com certo desprezo pela inevitabilidade de sucumbir. Era como eu via Lispector. Seu jeito introspetivo, labiríntico onde ninguém penetraria. Poderia o tempo engendrar modo de lhe deter o corpo mas, como Bartleby ou Clarisse, a paciente, a Lispector dos textos também não quereria o descontrolo diante de sua sentença.
O fascínio por estas personagens está no incumprimento. Julgo que somos todos instigados à procura da Liberdade num universo de regras, e mais nos ensina aquilo e aqueles que encontram coragem para divergir e até perecer sem assombro pela morte e com ganas por uma réstia de normalidade ou fulgor. Mas, neste Domingo à tarde, é o médico a figura do aluno aturado. Ele é o cidadão qualificado, alcandorado a uma elevação social, que no entanto se ausculta, se mede, com o que pode ser feito sem regras reconhecíveis, consensuais, e sem protocolo ou ciência para favorecer, afinal, algo maior como o amor.
Perante Clarisse, Jorge é também convidado a suspeitar de haver um precipício para os que se julgam seguros, feito de se balizarem demasiado, covardes ou apenas cegos para uma amplitude maior de existir. Sinto que é como se a vida lhe expusesse Lispector na marquesa da enfermaria, essa literatura que consideraria ignóbil, para que ele se aperceba do quanto as coisas indomáveis prefiguram esplendor humano. Para que ele pondere a que distância está desse esplendor.
É magnífica a resposta de Clarisse quando, já declarada de amor, lhe diz: “Leve-me para qualquer lado, onde seja apenas uma mulher.”. Esta Clarisse Bartleby, que muitas páginas antes, incumpridora, dizia: “Faço o que me apetece”, afinal, exatamente como a personagem de Melville, faz sobretudo o que precisa. Seus objetivos, no entanto, são de outra sensatez. São de outra justiça que não a comum.
Além disto, que perplexidade me causa agora entender como fumam no consultório e nas enfermarias. Fumam em toda a parte. Clarice Lispector fuma na célebre entrevista que alguém subiu para o Youtube. Guardo agora esta imagem sedutora das pessoas antigas que se matavam nesse vício que lhes oferecia uma neblina constante, em qualquer situação. Muito simbólico do mistério e da escolha de errar, sempre longe da perfeição e do recato.
Dito isto, Domingo à tarde foi publicado em 1961. Nessa altura, Lispector era uma excelente escritora brasileira ainda por consagrar e sem seus textos fundamentais. Nada do que pode sobrar na cabeça do leitor a partir deste romance de Namora é real no que concerne à ligação com Lispector. É uma coisa de outro universo. Modo como as mulheres mais intrigantes se assemelham, modo como as pessoas mais intrigantes se assemelham, modo como os grandes livros e autores se aproximam, afinal, através das grandes personagens que se assemelham. Lembrar dos livros, de qualquer modo, é livre. Uma experiência que nos pertence por exclusivo.J