Trazia eu, ainda, na memória alguns dos lances mais bizarros desse estupendo “vadiário breve” que é Quando o Diabo reza, romance que Mário de Carvalho deu à luz em finais do ano passado, quando o autor me lançou no regaço duas novelas que propõem uma radical mudança de paisagem ficcional e uma não menos arrojada inflexão no discurso narrativo. Refiro-me, é claro, a O Varandim seguido de Ocaso em Carvangel, que é o título compósito que aqui nos traz. Eu adoro receber no regaço ou na mesa de trabalho um novo título de um autor que muito preze; no caso de vir assinado por Mário de Carvalho, essa circunstância é sempre fonte de enorme alegria: a alegria do leitor. Já lá iremos.
Quando o Diabo reza é uma história de galdérios portugueses a fingir que são criminosos de alta estirpe, em ambiente suburbano de bejecas, tremoços, torresmos e outras frioleiras; o livro é de outros céus, mais a norte, talvez, na melhor das hipóteses, tingidos de centro-europeísmo austro-húngaro, uma confusão de nomes, línguas, costumes e outras particularidades, situado temporalmente num vago século XIX.
Estes golpes de rins no espaço e no tempo não são novos na obra de Mário de Carvalho. Pelo contrário, são uma das marcas de água da sua criação literária, porque a imaginação do autor não conhece fronteiras nem calendários: onde houver uma história para contar, aí está ele, de caneta em punho (é uma forma de dizer); e, se não houver história digna de prosa, inventa-se. Mário de Carvalho é um dos maiores inventores literários da escrita contemporânea em língua portuguesa. Só ele teria sido capaz de nos dar, num mesmo percurso criativo, dois romances tão extraordinários quanto diversos como são Um Deus passeando pela brisa da tarde (1994) e Fantasia para dois coronéis e uma piscina (2003).
Debrucemo-nos, em primeiro lugar, deste varandim que ele nos propõe como primeira história: “Morar numa cidade acidentada pode ser divertido quando se é novo e rampas e ladeiras convocam os músculos juvenis ao exercício. Mas, à medida que a idade declina, aplica-se a cidade a lograr os velhos. E sempre que eles retomam o fôlego no fio das esquinas, oferece-lhes ela mais caminho, tropeços e cansaços, como se os punisse por insistirem nos dias”.
Aqui tem o leitor, sobretudo se já tiver avançado na contagem dos anos, o retrato de Lisboa. Lisboa? Pois bem, não, não é de Lisboa que o autor vai falar, mas de uma história que se passa na “bela cidade de Svidânia”, nome de ressonância eslava, palavra de encontro e reencontro, urbe situada algures, governada por um grão-duque mais ou menos iluminado e convenientemente distraído. Mas a história de Zoltan Tremlich, viúvo desconsolado, abúlico e conformista, tem tudo a ver com a orografia da cidade: tivesse ele herdado uma casa na parte baixa, perto do cais e da praça, e não nas alturas de onde se abarca toda a cidade, e o seu destino teria sido outro.
Qual destino? Peço escusa por não ir mais longe, já que isso equivaleria a tirar toda a graça à história urdida por Mário de Carvalho. Mas poderei adiantar, sem receio de ferir o mistério, que aquela casa postada lá para cima, mediante certas circunstâncias históricas que se verificam em Svidânia, e que se ligam a uma conspiração anarquista, aquela casa acaba por se tornar para uns uma oportunidade, para outros (a começar pelo senhor Zoltan Tremlich) uma crescente incomodidade. A vaidade de uns equivale ao escapismo dos outros: não dizer nada, não se opor a nada, não reivindicar nada é tão inútil, tão fútil e tão trágico como encenar a verdade de uma ignomínia.
É o passo lento, quase insensível, do senhor Tremlich, que nos conduz à segunda novela, que se inclina para as dimensões, as delongas e os pormenores que definem o romance – se é que há, hoje em dia, uma qualquer definição minimamente fiável do que seja um romance. A cidade é, agora, outra: chama-se Carvangel. Situa-se na costa, imagino que virada a ocidente, em frente de umas ilhas de nomes igualmente sugestivos, e a ela se acede atravessando “a dura lentidão da paisagem do istmo”, uma extensa língua de terra constantemente percorrida por carruagens e carroções, a cumprirem o trajeto entre a capital e este desterro para onde ninguém quer ir, porque ali não se passa nada. “O porto era ruim, a cidade periférica, o comprimento do istmo desanimador, a maçada das viagens devastadora”.
De acordo. Mas daí a dizer que ali não se passa nada… Que engano! É certo que Carvangel só é notável porque nela há um canhão que não dispara e um barco – o Maria Speranza – que nunca mais chega. Como o jovem tabelião Rossélio Zeidrik vai descobrir, no entanto, estas duas impossibilidades são o móbil real da vida dos habitantes da cidade. Tudo se passa entre a vontade do canhão e o desejo da partida. E, entretanto, não se fazem casamentos, não se fecham negócios, não se consumam atentados anarquistas. Procrastina-se. Suspensa de uma hipotética demonstração de poder (o tiro arrasador do canhão), Carvangel obstina-se em sonhar com a viagem no Maria Speranza, navio mítico que há de guiá-la à vitória – seja lá isso o que for. Que viagem é essa? Ninguém sabe. Que navio é aquele? Todos o imaginam. Um charlatão de passagem, que diz tê-lo visitado, descreve-o assim:
“Convidado a ir a bordo, comera e bebera do melhor, de lavagante para cima, e percorrera os sete conveses, em que havia jogos de água, piscinas, jardins, casinos, salões, anfiteatros, dourados por todo o lado, querubins de talha a soprar em trombetas por entre eflorescências de cristais roxos, e multidões de gente vaporosa e alegre. Ao fundo dumas escadas de vidro estendia-se uma espécie de lago em forma de estrela, de água muito azul, em que golfinhos, aos bandos, mergulhavam encurvados e surdiam às cabriolas. O interior do navio era iluminado duma luz suave, lilás, que parecia brotar das paredes”.
Perante tal perspetiva, não admira que os habitantes de Carvangel, primeiro os de maior nota, depois, pouco a pouco, todos, aqui representados pelas personagens do romance, embarquem na aventura do Maria Speranza. Embarcar na aventura não é a mesma coisa que embarcar no navio; é embarcar na aventura de esperar pelo navio. E, entretanto (o romance, esta novela, é uma narrativa de entretantos), chacinam-se entre si os pescadores de duas aldeias vizinhas à vista do canhão e de toda a gente; faz-se ver o príncipe dos mabecos, que foi viver com os cães por não saber decidir-se entre duas irmãs presumivelmente capitosas; aparecem e desaparecem os dois namorados putativos de Wanda, a qual também não sabe por qual há de ganhar partido. Tanta coisa, afinal, que não se passa em Carvangel! Tanta, que o jovem notário, o tal Rossélio, a quem tudo acontece malgré lui, um pouco como uma personagem de Kafka, há de acabar por embarcar na aventura da viagem sonhada, aturdido e confortado, porque o seu destino não é grandioso e, no fim de contas, ele nunca quis vir para Carvangel. Em Carvangel, todos acabam por ter o Maria Speranza dentro de si, e a cidade é uma espécie de nave de loucos mansos vogando ao sabor da corrente da sua irrelevância histórica.
Se o leitor potencial do livro adivinha nesta síntese a voo de pássaro o traço da comédia e da derrisão, nem por isso deve antecipar um divertimento literário sem consequências: é que Mário de Carvalho, como já Lucrécio, prefere, às lágrimas de Heráclito, as gargalhadas de Demócrito; e nem por isso a fábula é menos parábola, se os leitores assim o quiserem: quem escolhe viver na esperança de um navio que não chega arrisca-se a perder-se da vida irremediavelmente.
Esta narrativa de fim do mundo, sobre a qual nada mais eu poderia dizer sem lhe desvendar o epílogo magistral, esta narrativa, dizia, constrói-se com recurso a uma paleta luxuriante de palavras, que recupera arcaísmos e encena neologismos, nomeia personagens através de um alemão graciosamente tripudiado e de voltas trocadas (adorei ver o apelido Merkel despromovido a sargento…), reinventa uma fauna e uma flora que se situam num limbo entre o mito e a realidade. No grão-ducado caça-se o licorne, que não é mais que o mítico unicórnio só vulnerável ao golpe das virgens; reúnem-se em ameaça permanente a Carvangel os mabecos, espécie de canídeos africanos que vieram aterrar aqui por efeito de transmigração literária; lançam-se sobre os despojos da batalha os grifos, fórmula mais elegante e de proveniência mitológica, muito presente na iconografia gótica, aqui usada para designar os vulgares abutres. As terras mais ou menos distantes, que são horizonte inatingível (porque o Maria Speranza continua sem chegar), dão pelos nomes de Shandenoor, Ashitueba, Matrashoba, Baramalã, Surabenar, Kimdemóvia; quando não há peixe, comem-se ovos de zonocapo, gaspiteias e liscorilhos, tromelgos e busteiras.
Ocaso em Carvangel é um festim de palavras, exóticas, estranhas, reminiscentes, e são elas que nos conduzem através de uma teia de pequenos equívocos, conspiratas mal-amanhadas, idílios mal resolvidos. Arrisco-me a dizer que esse cardápio vocabular, meio travestido, meio inventado, é um efeito humorístico irresistível, e dá à narrativa o encanto de uma história totalmente inverosímil que se faz real por obra e graça da pura e absoluta ficção. Lê-se Ocaso em Carvangel não para reconhecer a realidade, mas para descobrir uma realidade inventada, e a trama da invenção arquiteta-se com uma tão ampla e sugestiva gama de recursos que deslindá-la é um exercício de leitura exaltante, despertando em nós a fascinação pela escrita, que é o primeiro sinal da alegria do leitor.
Ora, aqui é que bate o ponto final: acontece-me, em momentos de maior fastio literário, ir à estante buscar um livro porque sei que nele vou encontrar um exercício de escrita que me faz mergulhar, enlevado, na música sedutora e irresistível da minha língua, tratada com desvelo e gozo pelo escritor. São poucos os autores a quem recorro nessas circunstâncias; Mário de Carvalho é um deles. Porque escrever não há de ser apenas concatenar ideias, densificar personagens, analisar situações. Escrever será tudo isso, mas é, acima de tudo, tornar viva e sensível a língua que nos foi dada e que, por nós reelaborada e enriquecida, ressurge no texto novo com a frescura de uma rosa colhida agora mesmo. Escrever é, apesar de todas as angústias e hesitações, uma hipótese de alegria. Ler a prosa de quem escreve assim é uma alegria constantemente renovada.
Destaque Mário de Carvalho é um dos maiores inventores literários da escrita contemporânea em língua portuguesa. Ler a prosa de quem escreve assim é uma alegria constantemente renovada