Para saber da relação que os escritores têm com a competição olímpica, pedimos que respondessem a um inquérito de três perguntas.
1) Que significado entende ter hoje o “olimpismo”? (Considera que o seu “espírito” inicial se mantém, atualizado, apesar dos desvirtuamentos, alguns graves, que em algumas circunstâncias históricas teve ao longo dos séculos?)
2) Que modalidades prefere, o que costuma ver e pensa ver nestes próximos JO?
3) Que memórias mais vivas, emocionantes, tem de JO passados, mormente em relação a participações portuguesas?”
Rui Zink – 2172.º lugar
1) O espírito olímpico deixa uns meninos à porta porque se portaram mal. Isso pressupõe que todos os que não ficam à porta se portaram bem, e não creio que isso seja verdade. Já tínhamos a memória seletiva, agora temos o olimpismo seletivo.
2) Na corrida, gosto de tudo, mas tenho um carinho especial pelos 100 metros e pela maratona. Parecendo opostos, completam-se. Os 100 metros podem ser considerados uma maratona quântica, mal começou já acabou, mas depois ficamos a ver as imagens em repetição e de todos os ângulos possíveis.
É uma coreografia interessante, os atletas preparando-se, os atletas congratulando-se e, pelo meio, aconteceu o quê? Ah, correram. Muito depressa. Na maratona é o contrário, a corrida dura mais do que uma longa-metragem. Se os 100 metros são um poema breve (um dístico, um terceto, um haiku), a maratona é um folhetim romanesco, até pela quantidade de personagens, para além dos golpes de teatro e peripécias várias.
3) Bom, a mãe de todas as participações é obviamente (e aposto que vou ter aqui mais colegas de carteira a dizerem o mesmo, isto sem nenhum de nós ter espreitado a resposta dos outros) a medalha de ouro do imortal Carlos Lopes nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, onde por coincidência os russos também não participaram.
Um dos favoritos chamava-se Salazar (estas coisas não se inventam) e Carlos Lopes fez de Salgueiro Maia: derrubou o regime. E deu-me, de bandeja, o primeiro capítulo do Hotel Lusitano. Inspirou-me ainda a correr eu próprio a primeira meia-maratona de Lisboa, no ano seguinte, com tiro de partida disparado pelo próprio Carlos Lopes. Infelizmente, não atingi os mínimos olímpicos: fiquei em 2172º num total de 2700 participantes. Mas cheguei ao fim!
Vítor Serpa – a missão jornalística
1) O espírito olímpico foi pensado por Coubertin para resistir às mudanças dos tempos. Os Jogos deveriam ser uma manifestação desportiva e cultural com uma perspetiva de união universal, capaz de se afastar das vicissitudes da realidade política de cada época.
Era, pois, uma utopia. Mesmo assim, o essencial foi resistindo, apesar dos sobressaltos. Os Jogos de 1936, na Alemanha de Hitler, foram usados na ideia de internacionalizar a propaganda da “grandeza histórica” do nazismo. Mas foi nos anos 60 do século XX que os Jogos se tornaram num palco habitual de contestações e de mensagens sociais e políticas.
No México, em 1968, a abertura dos Jogos foi aproveitada por milhares de mexicanos, que protestaram contra a pobreza e as más condições de vida do povo; e esses Jogos ficariam ainda marcados pelo protesto, em pleno pódio, de atletas negros americanos contra o racismo.
Quatro anos depois, em Munique, aconteceria a tragédia do ataque terrorista à delegação israelita. Em 1976, Montreal, começaram os boicotes políticos que se estenderam em 1980, em Moscovo, e em 1984, em Los Angeles.
Os primeiros Jogos Olímpicos que cobri para A Bola foram em 1992, Barcelona. Foi manifesta a ideia de afirmação da Catalunha e a abertura ao profissionalismo, com a participação da seleção americana composta por jogadores da NBA, o que criou imenso escândalo no movimento olímpico.
Quatro anos mais tarde, os Jogos Olímpicos comemoravam 100 anos. O poder do dinheiro e da coca-cola tirou a prevista celebração em Atenas e levou os Jogos para Atlanta. Seguiram-se os Jogos de Sidney e o pouco disfarçado aproveitamento australiano para mostrar ao mundo uma falsa integração do povo aborígene.
Atenas, em 2004, foi um erro de casting e ajudou a afundar a precária economia grega. Seguiu-se Pequim e a propaganda mundial do regime chinês de um país “aberto e moderno”. Os meus últimos Jogos foram em Londres (2012) que, apesar de indesejados pela população londrina, conseguiram melhorar a visão de um certo ideal olímpico, beneficiando de uma organização de imperturbável competência britânica.
Há muito que os Jogos Olímpicos se deixaram subverter nos seus ideais. Não sei, sinceramente, se teria sido alguma vez possível resistir ao peso da política e da economia. Logo que os Jogos se tornaram mediatizados e palco aberto para o mundo, foram capturados pelos irresistíveis poderes dos senhores do mundo.
Mais grave se torna, quando os próprios responsáveis do Comité Olímpico Internacional se envolvem diretamente em atos de pura decisão política, usando pesos e medidas bem diferentes. Como agora acontece.
2) Pensa-se, ingenuamente, que nos Jogos Olímpicos todas as modalidades são igualmente importantes. Não são. Há uma hierarquia histórica nos Jogos. Três modalidades no topo: atletismo, natação e ginástica. Todas as outras modalidades, por mais estrelas mundiais que comportem, como é o caso do basquetebol ou do ténis, não são tão valiosas.
Como diria George Orwell, caso se tivesse deixado entusiasmar pelos Jogos, todas as modalidades são iguais, mas algumas são mais iguais do que outras. Daí que, provavelmente sugestionado por essa regra mítica, goste de ver mais o atletismo, a natação e a ginástica.
Porém, nos mais de 20 anos em que cobri os Jogos, os meus gostos ficaram, muitas vezes, atraiçoados pela “superior” missão jornalística de acompanhar atletas portugueses, nas mais diversas modalidades. É o que dá ser jornalista da área do desporto num país pequeno e periférico.
3) Os Jogos Olímpicos são uma fonte quase inesgotável de histórias, o que é ótimo para qualquer jornalista que se digne sair do “aquário” das salas do “main press center”. Uma das situações mais marcantes, a nível internacional, aconteceu num encontro fortuito com Muhammad Ali, já muito debilitado pelo avanço da terrível doença de Parkinson.
Mais tarde, em Sidney, também assisti a um outro acontecimento memorável quando Eric Moussambani, mais conhecido por Malonga, um simpático nadador da Guiné Equatorial, fez esperar milhares de espectadores que acabaram por o aplaudir de pé, no final de uns penosos 100 metros livres, cumpridos em quase dois minutos!
O COI tinha aberto convites para casos especiais de exemplo e paixão pelo desporto. Malonga tinha aprendido a nadar no mar, apenas seis meses antes dos Jogos, nunca tinha entrado numa piscina, mas durante esses seis meses treinou-se com o rigor e a persistência de um campeão.
Foi convidado e nadou os 100 metros num estilo muito próprio. A sua história correu mundo e acabou por ser convidado pela Federação Espanhola de Natação e foi viver e treinar em Espanha. Mas também tive grandes momentos com atletas nacionais.
Viver a alegria dos medalhados é contagiante, mas acompanhar os dramas torna-se ainda mais marcante. Um caso entre muitos: Naide Gomes chegou a Pequim com a melhor marca do ano no salto em comprimento. Era, entre todos os atletas nacionais, a que mais facilmente deveria chegar a uma medalha.
Falhou três saltos na fase de qualificação e ficou fora da final. Isso aconteceu enquanto os seus familiares chegavam a Pequim para a acompanhar na glória. Falei com Naide depois daquele dramático desastre desportivo e ela disse-me apenas: “Nem consigo chorar!”
Rafael Gallo – as mascostes
Sou das pessoas menos indicadas para dizer algo sobre esportes. Não acompanho nenhum deles com afinco e, confesso, quando penso nas Olimpíadas a primeira coisa com a qual as relaciono é uma paixão de infância.
Antes que alguém se pergunte a que modalidade atlética estou a me referir, lamento desapontar, porém, meus grandes ídolos dos Jogos Olímpicos eram as mascotes. Sim, aquelas criaturas que frequentemente pareciam material rejeitado de algum cartoon.
Como uma criança apaixonada por desenhos animados e histórias em quadrinhos, essas personagens representavam para mim o lado mais criativo, mais fantasioso e, portanto, mais interessante de toda a efeméride. Lembro-me, em particular, da mascote das Olímpiadas de 1992, em Barcelona: Cobi, um cachorro que (só hoje sou capaz de reconhecer) tinha traços ligados à arte cubista, com algo de Picasso e de Miró.
Ele teve até uma série animada para televisão, à qual eu assistia com entusiasmo — nesse caso, sim — digno de um torcedor. No auge dos meus dez anos de idade e dos meus sonhos de ser desenhista, aquilo era o cumprimento pleno da vocação de uma mascote. Sempre quis que personagens tivessem mais e mais histórias.
Até hoje tenho uma certa curiosidade por essas criações, bem como pelas outras partes mais “estéticas”, digamos, das Olímpiadas. Se tivesse que escolher apenas um dos eventos de seu calendário para ver, minha dúvida seria entre a cerimônia de abertura ou a de encerramento.
Mas também me atento quando me deparo, na TV, com uma prova de patinação artística, nado sincronizado ou ginástica olímpica. Não que eu enxergue qualquer superioridade intelectual, ou de outra ordem, nesse lado estético; é só meu gosto pessoal. Disputas, apenas por si, não costumam exercer grande efeito emocional em mim. Palavra de um dos raros brasileiros que não se interessa por futebol.
Nas modalidades que destaquei como das que mais gosto, há outro aspecto que me fascina: quando alguém que a pratica demonstra uma capacidade que, até então, parecia humanamente impossível. Como aqueles saltos mortais que mais se assemelham a voos de um animal inédito, concluídos com perfeição milimétrica.
Isto me comove: uma pessoa expandir o raio das possibilidades que pareciam traçar nossos limites. E que façam isso, em geral, sozinhos, diante dos olhos do mundo inteiro e dentro de uma breve janela do tempo, cuja fresta se abre apenas de quatro em quatro anos.
É quase cruel uma pessoa exposta a tão fina corda-bamba da vida, cercada por tamanho precipício. Me lembram concertistas da música, que também têm de se colocar em uma situação de extrema pressão e realizar uma série de gestos, só seus, de forma irretocável (com o perdão da referência implícita a um certo livro e seu protagonista).
Bem, ao colocar as coisas sob esse prisma, me deu até vontade de assistir às provas deste ano. Vou buscar a grade de horários das Olímpiadas de Paris. Suas mascotes, devo dizer, me decepcionaram um pouco.