Há dias, o Agostinho Santos enviou a notícia de que levantara os pincéis dos papeis e das telas para os correr pelas paredes. Agigantara os gestos à medida dessa ameaça sem rosto que nos preda a todos. Este maldito vírus não se bastaria confinado na matéria educada de uma folha ou de um quadro, é uma presença que parece querer debater-se na vastidão dos ares até vencer pelos poros da casa e nos encontrar.
Senti que a parede expunha as figuras como se abrindo veios, um sangue preto a contaminar o atelier. O monstro erguido, os mortos tombados, cabeças de serpente vasculhando venenosas a carne a ferrar. Que impacto esse de ver a parede inteira sucumbir a este susto, o rosto proposto do predador, seus modos malignos, dentro, já dentro de casa, como se não houvesse modo de impedir que se aloje dentro de nós também.
Há uma demasia nesta situação. Somos ínfimos perante um medo do mundo inteiro. Nosso isolamento procura manter a normalidade mas, ainda que o sofá seja a mais confortável das trincheiras, os números dos mortos aumentam, e tantos mais que sofrem salvos apenas depois de profunda agonia. Chegam finalmente os casos mais próximos. Temos nomes para dar aos que não conseguiram resistir. Nossas provas estão dispostas na tristeza, vão começar sua saudade. Magoam. Magoarão sempre, e o medo ainda nem teve maneira de terminar.
Para os que têm nomes dados aos mortos já nada é pequeno. Nenhuma esperança é sem preço. E o ar fica táctil, como se buscássemos na sua condição invisível um atrito maior, a presença desse corpo inimigo que se abeira e que chega pronunciando novos nomes, todos os nomes.
Por estes dias, estão os meus amigos artistas a lidar com a necessidade de capturar o possível dessa invisibilidade. O Agostinho Santos convidou para acompanhar o grupo virtual do GIA (Grupo de Intervenção Artística), coletivo que integra também a Nazaré Álvares, o Humberto Nelson, o António Franchini, o Filipe Rodrigues e o Rui da Graça. Entre eles, assistindo como se me dessem acesso privilegiado a um atelier múltiplo, vou encarando as diferentes formas de pensar sobre ter medo e ter esperança. Na ligação entre essas duas realidades estarão certa dor e superação.
Podemos criar a partir do monstro e da presa ou do resistente e do atacante. Incidindo no aspeto que terá o Mal e aquele que sucumbe ou, por outro lado, observando aqueles que resistem ou investem no ataque, o que poderemos ver como o Bem. Nos trabalhos do GIA vejo do vírus ao médico. Misturadas as imagens dos diversos artistas, gera-se uma narrativa de guerra, batalha a batalha lembrando filmes americanos com bichos avançando pelas ruas e heróis inteligentes usando astúcia contra um tremendismo violento. Quase como ver Godzilla bruta por Manhattan adentro, e um qualquer Will Smith a puxar pela cabeça para descortinar o ponto fraco da besta, dominando o inferno pelo pensamento e não pelo ímpeto do golpe. As figuras hospitalares da Nazaré Álvares são uma ansiedade pela ciência. Julgo que é o que mais nos dá esperança, a convicção de que um investigador num laboratório qualquer haverá de gritar eureka o mais depressa possível. Suficientemente depressa para que nos salvemos a todos, normalizados como se soubéssemos desde o início que isto não ia passar de uma bizarra primavera.
Sou, contudo, convicto de que nos atraem as proporções bíblicas. Crescemos a ouvir essas histórias imaginárias, ou de outros tempos e povos, que nos contam sobre desgraças de milhões. De algum modo, as gerações que não encaram proporções bíblicas não foram levadas ao limite ou, simplesmente, não prestaram atenção ao mundo. As tragédias efetivas da fome ou dos refugiados bastariam para a quota parte de absurdo da atualidade. Mas para o cidadão entrincheirado no sofá não é suficiente. O sofrimento não é mais inteligível a partir da notícia. Precisa de outro compromisso. Soterrados em notícias, o único modo de avaliarmos as coisas é quando se interfere na nossa normalidade.
O mural nas paredes do Agostinho Santos parece-me uma rutura com a normalidade. Uma expressão fraturante como se quisesse significar que a sua trincheira não é a do sofá. Subitamente, ocorre-me como urge que nos levantemos ainda. Isolados não pode significar demitidos, muito pelo contrário. E nem que nas paredes de todas as casas agigantem os temores de cada um, torna-se fundamental entender que isto tem de nos abrir os olhos para as tragédias de proporções bíblicas que se têm vindo a ignorar, ou então não valemos nada. Seremos uns inúteis hipócritas a carpir por valentias históricas sem lidar com a nossa vez de estar na História.