A enfermeira entrou de rompante pelo quarto do hospital, nessa madrugada de Abril de 1974, dizendo que havia uma revolução na rua.
A garota de 11 anos que eu era perguntou se a Revolução era dos bons ou dos maus. Ninguém sabia responder-me. Eu estava toda enfaixada e proibida de me levantar da cama, e fiquei a pensar no que diria para me salvar se me aparecesse de repente um brutamontes com uma metralhadora. Tinha já essa ideia, que a vida veio confirmar-me inúmeras vezes, de que as palavras são actos concretos de perdição ou salvação. Quando consegui arrastar-me para a janela do corredor, às escondidas das autoridades, vi tanques de guerra cobertos de homens com cravos nas mãos. As mulheres corriam para os homens fardados, oferecendo-lhes leite, laranjas – e mais flores. Nessa noite soube que o Hugo dos Santos era um dos criadores daquele dia luminoso e justo, e percebi que aquela era a vitória do bem sobre o mal. O Hugo, que foi um segundo pai para mim, era um dos bons. Como eram outros – alguns dos quais, como o Hugo, já desaparecidos.
“Foi para ti, para a tua geração, que fizemos o 25 de Abril” – disse-me depois o Hugo – “Para que vocês nunca tenham de viver com medo”. Prometi-lhe honrar essa dádiva todos os dias da minha vida. Sempre que alguma sombra de medo se aproxima, com o seu sibilante cortejo de cobardias, subservências e traições, penso nesse grupo de jovens que entregaram a sua vida à causa da liberdade, e a sombra esfuma-se. Não tenho respeito nenhum pelos que se deixam amedrontar e remodelam os seus padrões de ética à medida das tutelas do dia. A mentalidade sonsa e rasteira formada pelas ditaduras não desaparece por obra e graça da Democracia; pelo contrário, tem tendência a expandir-se nas primeiras levas de mobilidade social, que transformam os condenados à pobreza em ambiciosos esperançados. Nem toda a esperança é de boa qualidade. O esforço democrático de abolir os cânones é aproveitado com a esperteza pelos videirinhos de todas as espécies, tão lestos a atirar ao mar os princípios mais básicos como a chorar em voz alta o fim dos valores.
Ouço demasiada gente a confessar-se “confusa” ou a maldizer “essa coisa da política”. Não vejo confusão nenhuma: quem se ajoelha perante “os mercados” acaba espancado pela mercadoria, e o mundo só melhorará quando a tal coisa da Política se impusar sobre os mandarinatos da inefável Economia.
Ainda assim, convém não esquecer que antes do 25 de Abril, a pobreza era endémica e inamovível, as mulheres eram criadas dos homens, a mortalidade infantil altíssima e o pensamento livre um crime punível com prisão e tortua. O desespero em que o país se meteu por conveniências da atrofia moral não deve fazer-nos esquecer estas evidências históricas. Dizem agora os novos-ricos do saudosismo que pelo menos havia dinheiro nos cofres. E dizem-no sem sequer notarem a ignomínia que representa esse seu dizer, face aos que viviam descalços e famintos. A esta mistificação responde-se com uma gargalhada alta e limpa como esse dia de Abril de 1974.