Sempre que me pedem para contar como vivi o 25 de Abril, penso de imediato numa imensa festa, numa rutilante aventura feita de liberdade.
Sentindo-me como se ainda continuasse a contar de memória cada mês, cada semana, uma por uma, a partir daquela primeira noite em que começou a ser-nos cortada a atadura do medo e pudemos pensar em reaprender a vida, numa passagem do que apenas fora anseio para a realidade jubilosa, indo do negrume pesado e ameaçador da véspera ao sobressalto das longas horas, nas quais o som de uma marcha militar se apresentava enquanto inquietante e esperançoso enigma, como se tratasse de um código, um sinal, uma espécie de promessa inolvidável, enquanto já íamos imaginando outro futuro.
Fora a Maria Isabel Barreno que me telefonara, alertando-me para que algo de estranho se estava a passar… “Liga a rádio, já!” – disse-me, e eu liguei-o e fiquei ali siderada a ouvir, “aqui, Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas”, seguido de uma marcha militar, enquanto o Luís se voltava a vestir, à pressa para sair, madrugada dentro a caminho do Expresso, onde então trabalhava.
Madrugada que passei em branco, a tomar conta do sono do meu filho então com nove anos, coração descompassado na dúvida do que estaria a acontecer, num espaço que existia para além de todos nós, num universo aparentemente imóvel e impossível, ao longo das lentíssimas horas que tanto demoravam a passar.
Entretanto ligou-me a mulher do jornalista Figueiredo Filipe então encarcerado na prisão de Caxias, membro da direção do Sindicato dos Jornalistas, do qual Luís era presidente e por isso mesmo podendo ser preso a qualquer momento. “Se é um golpe dos militares ligados ao Kaulza, dão cabo do Filipe!” – murmurou aterrada. Ainda tentei tranquilizá-la, mas também eu tinha o coração apertado, apesar do sonho.
E assim continuei, a escitar p Rádio Clube Português, livro de poesia aberto ao acaso em cima dos joelhos desatenta, a procurar no entanto o chão seguro dos poemas, nessa noite a parecerem-me ainda mais sobressaltados do que deles me lembrava. A resguardarem-me, sem sossego de nada.
Sentimentos desencontrados e absurdamente dissonantes, diante das emoções, aliás tão estranhas a mim mesma, enquanto o pensamento ia seguindo na esteira das mesmas equívocas palavras e da mesma marcha militar, que pareciam epenhadas sem disfarce, em manter o seu ritmo monótono e hipnotizante, a repetirem-se e a repetirem-se sem fim, na teima afincada de fazer nascer o devaneio, ao mesmo tempo que, ambiguamente, continuavam a desencadear a dúvida: seriam os jovens capitães que de novo tentavam acabar com a ditadura, entregando outro destino aos portugueses ou os militares da extrema direita, que tinham resolvido pôr o país a ferro e fogo? E foi com esta preocupação assustadora e simultaneamente confiante – pois nenhum dos telefonemas entretanto feito por amigos a conseguira resolver – que nasceu a manhã do dia 25, sol ainda manso e translúcido cumprindo a primavera.
Tomei um café e liguei para a Maria Velho da Costa. Como não podia deixar de ser, falámos do nosso julgamento a decorrer por efeito de um processo que nos fora movido pelo governo fascista, devido à publicação de Novas Cartas Portuguesas escrito juntamente com Maria Isabel Barreno. “Se for um golpe dos militares do Kaulza, vamos logo presas, caso sejam os capitães, é diferente”, concluímos, unânimes.
Em seguida acordei o meu filho, contei-lhe o que se passava, logo vendo nascer o brilho da excitação, no seu olhar azul, diante de tão inesperada aventura, a que secretamente já íamos chamando de revolução, e partimos a caminho do Expresso, pelas avenidas vazias, a fim de saber do Luís [de Barros], que continuava sem dar notícias, e a querer saber aquilo que as suposições, as inquietações e os boatos que provinham de todos os lados, sempre desfiguravam, deturpavam.
Chegados ao jornal, onde entrei de respiração suspensa, logo dei conta do burburinho, da tensão nervosa, acabando por ser o Marcelo Rebelo de Sousa a dizer-me que a situação se mantinha confusa, embora tudo levasse a crer tratar-se de uma revolução chefiada por militares de esquerda. Acrescentando que o Luís se encontrava desde cedo no Rádio Clube. Voltámos para a casa a contra-gosto, e quando no início da tarde falei em ir sozinha para junto do quartel do Carmo, o meu filho disse-me: “Um dia vou acusar-te de não me teres deixado ver a revolução”. Desassossegada, abracei-o, e fomos ver a revolução na rua.
Sempre pensei que seria lindíssimo traçar-se um mapa do 25 de Abril, com os seus cânticos, as suas bandeiras vermelhas, as suas paixões, com as suas palavras de desobediência e transgressão, a sua luminosidade fulgurante, com as suas ruturas e sussurros, seus versos e poemas, com as suaus paixões e as suaus metáforas, o seu imenso júbilo e clamor. Com os títulos dos seus livros, um por um, sem interessarem saber quais, a dar corpo à sua memórias. Sempre pensei que seria belíssimo, traçar-se um mapa do 25 de abril, desenhando a liberdade.