A Arrábida é um dos territórios nacionais com maior presença cultural e simbólica na nossa consciência coletiva Botânicos e geógrafos como Robert Chodat, Orlando Ribeiro e Hermann Lautensach explicaram-nos a sua qualidade de diamante natural. Geologicamente, a Arrábida contém traços manifestos das grandes movimentações das placas tectónicas que modelam a fisionomia da história planetária. Geográfica e climaticamente, é um dos exemplos da extrema diversidade do território português.
O mesmo se pode dizer sobre a fauna e a flora, com uma assinatura própria, seja em terra como no mar, onde as águas costeiras imitam a função de berçário dos estuários, servindo alimento e abrigo para uma grande variedade de espécies marinhas. Mas existe também a história, marcada no património construído, e o sopro de espírito, que exalado do azul oceânico, sobe pela serrania calcária, cristalizando-se nas páginas do misticismo religioso ou da exaltação poética e literária.
Mas a Arrábida celebra também o envolvimento no mundo, nas grandes causas coletivas. Sebastião da Gama (1924-1952), cujo século de nascimento estamos a comemorar, foi também um combatente, intenso e pioneiro, pela proteção da Arrábida. Em 1947, a Mata do Solitário, uma joia botânica hoje com o estatuto de reserva integral, estava a ser delapidada como combustível para um vulgar forno de cal.
Gama escreve para a imprensa e para figuras influentes. Ficou célebre uma fulminante missiva: “Senhor engº. Miguel Neves. Socorro! Socorro! Socorro…O José Júlio da Costa [proprietário de um forno de cal] começou (e vai já adiantada) a destruição da metade da Mata do Solitário que lhe pertence. Peço-lhe que trate imediatamente. Se for necessário restaure-se a pena de morte. SOCORRO!” (23 de agosto de 1947).
O prof. Baeta Neves, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, assumiria como sua, esta luta, e em 1948 nasceria a Liga para a Proteção da Natureza (LPN), a primeira organização ambientalista nacional. Aliás, logo após o 25 de Abril, seriam alguns jovens setubalenses ligados à LPN, os principais ativistas pela criação do Parque Natural da Arrábida (que ocorreu em 1976).
Na Arrábida de Sebastião da Gama ecoam também as vozes de santos e místicos como São João da Cruz, Santa Teresa do Menino Jesus, ou Frei Agostinho da Cruz (aliás, Agostinho Pimenta. 1540-1619). Contudo, não me parece adequado circunscrever o Poeta numa ilha cultural excessivamente regional, quando o tema do divino e das suas metamorfoses é transversalmente europeu e a avidez intelectual do jovem Sebastião não parece respeitar ou embaraçar-se excessivamente com fronteiras.
Longe de querer filiar Sebastião da Gama numa genealogia exclusivamente nacional, reduzindo-o a aedo de agendas filosóficas demasiado precisas, parece-me possível vislumbrar na sua poesia as dúvidas, hesitações e conflitos, certamente matizados com os traços e padrões da nossa cultura nacional, que caracterizam as demandas pelo transcendente na atmosfera europeia da morte de Deus, como ficou ilustrado tanto no helenismo romântico de Hölderlin, como no grande poema filosófico de Nietzsche, Also Sprach Zarathustra (1883-1885), que Richard Strauss transformará em poema sinfónico em 1896.
Estou convencido de que uma pesquisa mais vasta e profunda pela obra poética de Sebastião da Gama, orientada pelo triângulo temático Deus-Natureza-Morte, exibiria esses momentos de tensão e dúvida que são inteiramente partilhados pelas mentes mais lúcidas da consciência europeia. Deus serve de contraste e motivo de escândalo perante a persistência da injustiça no mundo (“Pão Nosso de Cada Dia”, Cabo da Boa Esperança*, pp. 121-2). Noutros textos, o Poeta expressa uma clara nostalgia pelos desaparecidos deuses da Antiguidade, evocando nisso o helenismo de Nietzsche (“Deuses”, Campo Aberto*, p. 47; “Baco”, Cabo da Boa Esperança, p. 71). Noutro lugar, constata-se não tanto a morte, mas o eclipse ou a fuga de Deus (“Paraíso Perdido”, Campo Aberto, p. 53).
A Natureza está presente diretamente. Sentimos o sal do mar na face, o álgido vento norte, em ligação explícita com a dor e o sofrimento, sublimados ao lado do que é mais sensual e luminoso, como diferentes afirmações de uma Vida pensada numa espécie de incondicional e afirmativa aceitação dionisíaca (“Condição”, “Os que Venham da Dor”, Campo Aberto, pp. 110/111; “Canção do Vento Norte”, Cabo da Boa Esperança, pp. 46-47). Ou ainda, a Natureza vista como oposição a Deus (“Palavras a Frei Agostinho”, Campo Aberto, p. 58).
A morte é um tema que surge também em múltiplos laços associativos e sob conotações, aparentemente contraditórias, mas sempre subtis. Destacaria, mais uma vez num registo de vitalidade dionisíaca, a coragem de aceitar a morte, como um gesto supremo de triunfo da vontade de viver, nunca se confundindo com a patologia mística de a desejar. Não nos surpreende escutar o Poeta recorrendo a Cristo numa exortação por mais um fôlego existencial, perante uma morte ainda não merecida (“Cristo”, Campo Aberto, p. 121). Sebastião da Gama ocupa um lugar próprio no quadro dos temas e controvérsias do “espírito do mundo” (Zeitgeist) europeu da sua época, que em muitas facetas ainda é a nossa. J
* Cabo da Boa Esperança e Campo Aberto, Edições Arrábida, 2007.