O grande paradoxo de Pedro Costa é que despreza a elite que o admira enquanto é ignorado pela generalidade do público que almeja. Assim se explica que, a propósito de Cavalo Dinheiro, alegadamente tenha recusado todos os pedidos de entrevista (incluindo o do JL) à exceção da RTP África. Tal como, num filme anterior, de início, só aceitou dar entrevista aos jornais Metro e Correio da Manhã. É uma espécie de sequência de ménages de amores não correspondidos, que, do nosso lado, se volta a confirmar neste filme, porventura o mais idílico da sua obra.
O primeiro ponto de estranheza é a redução do ecrã para 4:3, um formato televisivo, que aparentemente não beneficia o esplendor da fotografia. Tal pode estar ligado com a opção prática pelo digital. E, na verdade, rapidamente se dissipa pela força da sua linguagem visual. O cinema é luz e sombras. Em Pedro Costa, mesmo com o uso da cor, tal se concretiza no mais elevado nível poético. Tal como noutros realizadores, como Carl Dreyer ou Alexander Sokurov, em Pedro Costa a fotografia atalha a herança da pintura no cinema. Tudo se constrói em torno do justo posicionamento da luz, que exprime o olhar do realizador sobre os seus atores/protagonistas. Esse olhar contrasta com uma certa ideia de autenticidade que, na verdade, é criada sobretudo através do argumento.
Em Cavalo Dinheiro, recupera Ventura, a mais fascinante de todas as suas personagens, para recuar no tempo, partindo atrás da sua “história com o 25 de Abril”. Ou seja, ao contrário do que acontece com outros filmes, é necessário um mergulho no passado. E esse mergulho é feito através da revisitação dos traumas, tendo como ponto de partida um hospital psiquiátrico.
Há assim qualquer coisa de radicalmente diferente em relação aos outros filmes com Ventura. A realidade funde-se com o delírio e os universos atravessam-se, muitas vezes sem esclarecer em que plano nos situamos. Essa névoa traduz a rigor o estado de espírito do próprio Ventura, que vive falando com as paredes do hospital e lida com os seus traumas a viva voz. Não só a guerra, mas também a vinda para Portugal, o desenraizamento e a exploração laboral que se torna explícita em Alto Cutelo, a música de Ildo Lobo/Os Tubarões, usada como banda sonora endógena e exógena. A questão aqui é que, para um doente psiquiátrico, atormentado por imagens do passado, o delírio, o atabalhoamento das memórias, é tão real quanto a dita realidade. E é essa ideia de fusão de planos que nos permite viajar ao outro de forma sublime, um pouco como em alguns livros de António Lobo Antunes.
Contudo, este novo elemento, de passado, trauma, sobreposição de tempos, obriga em Cavalo Dinheiro, Pedro Costa a ficcionar para além do improviso, com uma produção mais planeada, embora minimal: Ventura perde-se e é entregue pela filha ao hospital, mas enquanto se perde julga-se perseguido por militares. Há atores a fazer de militares e até um tanque.
As grandes questões da cinematografia de Pedro Costa continuam presentes: a vida das comunidades cabo-verdianas nos subúrbios de Lisboa, o desenraizamento, o espaço vazio entre gerações, a pobreza, a exploração, a distância, a saudade da terra, a pertença, a desesperança. Todavia, em Cavalo Dinheiro, Pedro Costa não se aventura pelos bairros. As personagens são ‘levadas’ para ambientes, significativamente mais frios, o que acentua ainda mais a sua fragilidade. Conta com muitos interiores. Primeiro o hospital, que é ponto de partida, depois as ruínas que servem para retratar os traumas de trabalho, dar voz às vítimas de calamitosas injustiças. Esse contexto, a construção delirante sobre as ruínas de uma antiga fábrica, que é expresso de forma explícita na morna de Ildo Lobo: “Vai para Lisboa e vende a sua terra/ por metade do preço/ ali trabalha à chuva e ao vento/ ao frio/ na Cuf, na Lisnave e na J Pimenta/ explorado/ mão-de-obra barata por mais que trabalhe/ servente/ mão-de-obra barata barraca sem luz/ comida à pressa/ ainda mais enganado que o seu irmão branco/ explorado”.
De certa forma, Pedro Costa fez um filme de zombies. As personagens que por ali deambulam já não estão ali, são mortos vivos. Fantasmas atormentados que pairam sobre ambientes abandonados em nome de memórias tenebrosas ou ajustes de contas. Deixaram-se enclausurar num circuito fechado, do qual não conseguem escapar, andam em loop. Uma das cenas mais fortes é o encontro de Ventura com a própria morte, personificada num soldado petrificado, com o qual dialoga sem mover os lábios. É um assalto da própria existência, intercalado com urras ao MFA, entre o desespero e a esperança. Às tantas, entre uma mata pobre e os corredores de luz branca do hospital, grita-se. “O povo vencerá vencido!” Mais à frente canta-se Cabo Verde em voz sumiça.