A Comedia Eufrosina de Jorge Ferreira de Vasconcelos, já foi focada nesta rubrica enquanto texto inspirador de outras obras teatrais. Queremos agora lembrar a sua contribuição para a fixação e valorização da língua portuguesa em meados do século XVI.
A Eufrosina constitui uma das fontes peninsulares do Don Juan de Tirso de Molina. O moço de câmara Cariófilo, “el gran garañón” de Portugal, figura prodigiosa e sedutora da galeria das personagens dramáticas de F. de Vasconcelos, oferece-nos uma filosofia de imoralidade amatória idêntica ao burlador de mulheres de Molina e, consequentemente, do dissoluto D. Juan de Moliére. Também foi assinalada a relação estreita existente entre a comédia de Vasconcelos (escrita e representada, segundo se pode inferir pelo texto, em Coimbra, por volta de 1542 e editada em 1555), e o Auto de Filodemo, de Camões, provavelmente representado também em 1555, em Goa, na Índia. A afinidade da intriga e das personagens, evidencia a importância da Comedia Eufrosina na época.
A obra saiu anónima e teve quatro edições quinhentistas (1555; 1560; 1561 e 1566). Entrou no Índex de livros proibidos em 1581 e por isso foi interdita a sua leitura em Portugal. Saíu impressa e “emmendada” por Francisco Rodrigues Lobo em 1616. A versão censurada manteve-se ainda na edição que se publicou em 1786. Em 1919, o lusitanista inglês Aubrey Bell inaugurou com a edição da Comedia Eufrosina a Colecção Monumentos da Literatura Dramática Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa. Em 1951, Eugenio Asensio descobriu e editou em Madrid a editio princeps de 1555.
Em Espanha a obra teve uma recepção afortunada e Lope de Vega foi o seu maior admirador. Francisco de Quevedo escreveu o prefácio para a tradução castelhana de 1631. Seguiu-se uma 2ª edição castelhana em 1735, e saiu ainda uma 3ª impressão em 1910, em Madrid, realizada por Menendez y Pelayo, que valorizou nela a relação com as letras castelhanas, nomeadamente com a Celestina. Presentemente, dois investigadores das Universidades de Worcester e das Ilhas Baleares preparam uma 4ª edição em língua castelhana.
A Eufrosina é uma obra prima de grande teatro do mundo, a quem são apontados dois pecados: a extensão e erudição do texto. Uma cuidadosa e criteriosa adaptação resolveu o primeiro, não intransponível problema, já que, como bem sublinhou a esse propósito Jorge de Sena, convém não esquecer que numa peça “uma coisa é o texto impresso, para ser lido, e outra a adaptação para a cena, que pode reduzi-lo a proporções convenientes”. O outro grande problema, o da erudição da Eufrosina, foi apontado por Vasco Graça Moura. Assim, e seguindo a opinião deste escritor, se à extensão e erudição de um determinado texto se juntar o “descaso” dos programas escolares em relação à língua portuguesa, a desvalorização dos seus clássicos e alguma impreparação de muitos professores, eles próprios vítimas de um ensino deficiente “tudo contribui para gerar um desinteresse que se vai traduzindo numa gravíssima “desaprendizagem” da língua portuguesa e numa espécie de renitência enfadada, quando não de rejeição total, para com os seus principais autores”. Por isso, ele próprio se animou a realizar uma versão reduzida, “fielmente perservada” da voz de Camões nos Lusíadas.
Do ponto de vista do teatro, a autora deste artigo preparou uma versão cénica e encenou a peça na Igreja do Convento dos Inglesinhos, em Lisboa, em 1995, a que se seguiu uma digressão por Coimbra e Porto.
As ferramentas dramatúrgicas de que o teatro dispõe permitem resolver o primeiro problema e assumir o segundo, não como um defeito, mas como uma virtude. Quer no espectáculo representado nos Inglesinhos, quer na encenação desta peça que foi feita com jovens estudantes do ensino secundário das Escolas de Dança e Música do Conservatório Nacional, em 2011, como ainda na reflexão produzida no artigo Eufrosina regressa à escola, foi possível desmistificar a questão, mostrando que temos muito a perder ao não ensinar aos nossos jovens este repertório, e muito a ganhar em ele ser conhecido e representado.
Diz-nos Peter Brook que “Si l’on veut que la pièce soit entendue, alors il faut savoir la faire chanter”. Ninguém imagina os ingleses a abdicarem de representar o seu Shakespeare só porque à primeira leitura o leitor médio muito pouco percebe do que ali aparece escrito, dada a complexa matéria verbal, de metáforas poéticas e de referências a um tempo histórico e cultural longínquo. As dificuldades da representação deste repertório erudito quanto complicado são similares. No entanto, verifica-se uma prática e um entendimento diferente, em cada um destes países, face à sua cultura e ao seu teatro.
Embora o que está em causa nesta rubrica seja a teatralidade destas obras, quero sublinhar que essa mesma teatralidade se encontra ancorada num prodigioso texto esgrimado em português e que, desde o primeiro momento, os gramáticos e os dicionaristas o tomaram como prato requintado, excelso e exemplar do repositório tanto da língua portuguesa erudita, como dos seus usos populares.
O discurso é grande arquitectura. O vocabulário engenhoso, gracioso, subtil. A palavra em Vasconcelos é um poderoso motor de acção. É acção poderosa. O Amor é aqui o tema central da obra e sai vencedor. Não é a donzela Eufrosina vencida pelo amor através das mil razões expostas por Zelótipo numa carta escrita em português como se fora Homero? Não são as tramóias do doutor Carrasco, doutor de leis, desmontadas pela elocução clara e argumentação sábia de Filótimo? Os exemplos são incontáveis. Exposição e argumentação oferecida em baixela de oiro, tal como de oiro e mel são as palavras na renascentista Eufrosina: leves, rápidas, exactas, visíveis, múltiplas e consistentes.
As falas das personagens de Vasconcelos têm um efeito desencadeador e poderoso. Por isso o primeiro contacto com este admirável mundo provoca espanto e estranheza. Quem fala tem muito a dizer e di-lo com elegância, inteligência, humor e eloquência. Nesse lugar teatral, conjuga-se estudo e inventio, acção e divertimento, teatro português e império da Língua portuguesa.
E como diz o povo, e com ele Jorge Ferreira de Vasconcelos, não fosse ele o campeão dos aforismos, Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. Para o próximo ano, em 2015, está a ser preparado o V Centenário do comediógrafo, envolvendo estudantes de escolas artísticas, uma Exposição, um colóquio internacional e a estreia mundial da Comedia Aulegrafia. Oxalá consiga a protecção dos deuses e dos homens também.
Lisboa, 23 de Julho de 2014
Silvina Pereira