Epicarmo, comediógrafo e filósofo pré-socrático grego, terá sido o primeiro, segundo a tradição, a trazer para o teatro o mito do nascimento de Hércules, resultante da metamorfose de Júpiter no general tebano Anfitrião para, com a sua aparência, obter os favores da sua esposa Alcmena.
Esta última aventura amorosa de Júpiter, ocorrida neste nosso mundo, foi teatralizada por Plauto que a imortalizou em o Anfitrião. Nesta sua peça, Alcmena, é objecto dos desejos de Júpiter. Para levar a bom porto o seu intento conquistador, o Deus do Olimpo envia Anfitrião para a guerra e, em seguida, apodera-se da sua figura humana. Este disfarce, permite-lhe deitar-se no leito da bela e virtuosa Alcmena. Nocturno, a pedido de Júpiter, prolonga demoradamente essa noite de amor. Acontece que, também nessa mesma noite, Anfitrião, após uma gloriosa batalha, regressa a casa, enviando Sósia, o seu criado, a anunciar a sua chegada. Por sua vez, Mercúrio, filho do ardiloso Júpiter e seu cúmplice, transforma-se ele próprio também em Sósia, divertindo-se a aterrorizar à porta de casa o pobre escravo, que se vê face a face, com um outro em tudo igual a si. Como se não bastasse esta usurpação, obriga-o, à força de pancada, a negar o seu próprio nome e condição. Entretanto, dentro de casa, quando finalmente a noite, que parece não mais acabar, dá lugar ao dia, Júpiter/Anfitrião, satisfeito, despede-se de Alcmena. Quase de seguida o verdadeiro Anfitrião entra em casa. Se a perplexidade de Alcmena, por tão insólito e inesperado regresso é grande, menor não é o desespero e fúria do marido, percebendo-se enganado. A confusão alimenta todo o desenvolvimento da intriga que só virá a ser resolvida quando Anfitrião, calando a humilhação e o ciúme conjugal, aceita a vontade de um deus que roubando-lhe a identidade, lhe ludibriou e emprenhou a esposa. Por essa razão, Alcmena dará à luz gémeos, o pequeno Íficles e o fortíssimo Hércules que, logo à nascença, esmaga nas mãos, as venenosas serpentes que a ciumenta Hera havia posto no seu berço como castigo do infiel Júpiter.
Depois da peça plautina, o termo anfitrião é sinónimo de quem bem recebe e, em cuja casa se janta e Sósia como duplo de outrém. Nesta paródia mitológica, tudo acaba bem, como compete à comédia, embora designada como tragicomédia, pelo próprio Plauto já que nela entram deuses e homens e, aqui, o riso fere como fogo.
Um número impressionante de dramaturgos trataram o tema, desde o já referido Plauto, até Camões, Moliére, António José da Silva, Kleist, Giradoux, entre outros, uma trajectória apenas interrompida na Idade Média, já que o espírito medieval foi alérgico à “mitologia pagã, sensual e destravada”, e no Romantismo, “demasiado imbuído do eu para aderir à cómica dissolução da personalidade dos Sósias”, segundo o parecer de Clara Grabée Rocha, em As aventuras de Anfitrião e Outros Estudos de Teatro, editado em 1969. Neste seu estimulante estudo, Clara G. Rocha lembra como certas figuras teatrais “solicitam criador após criador, como almas penadas à espera do mago que desfaça definitivamente o encanto que as prende ao mito inicial”, constituindo-se como um “elo secreto que une os dramaturgos”. Nessa “ressurreição periódica”, verifica-se o facto excepcional de possuirmos em língua portuguesa pelo menos quatro Anfitriões, nomeadamente, a revisitação camoniana conhecida como o Auto dos Anfitriões.
É sabido que Camões se deixou atrair pela expressão teatral, produção que se situa no alvor da sua vida literária, já que as suas comédias, Anfitriões, Seleuco e Filodemo foram escritas de 1542 e 1555, embora a faceta de poeta dramático seja secundarizada em relação à lírica e à épica. Esta falta de entusiasmo pelo seu teatro deve-se ao facto de o considerarem obra menor, como acontece com Luciana Stegagno Picchio, para quem a actividade dramática de Camões não é mais do que “uma diversão e uma curiosidade”, uma perspectiva que Luís Francisco Rebello virá a refutar em Variações sobre o teatro de Camões, assinalando que não deixa de ser “injusta a situação de subalternidade a que tem sido votado” o seu teatro. Por outro lado, lembra o teatrólogo que “muito espaçadas, e em regra pouco significativas, têm sido as representações dessas comédias, devido à prática inexistência entre nós de uma companhia votada à manutenção do repertório nacional”.
Entre a comédia plautina e o auto camoniano há diferenças significativas. Por exempo, Plauto inicia a obra com um extenso prólogo onde expõe o argumento da comédia, narrando uma acção já acontecida e fora do olhar do espectador. Ao invés, Camões elimina esse prólogo, substituindo-o por uma sequência de cenas, em que os primeiros passos da intriga não são narrados mas sim representados perante o espectador, o que sem dúvida amplia a eficácia teatral. Mas o que verdadeiramente separa Camões de Plauto, segundo L. F. Rebello, deve ser procurado a um nível de significação mais profunda. O poeta latino “remoça” uma história velha e relha”, mantendo o respeito pela tradição mitológica, enquanto Camões quer realçar o lado humano da anedota que se propõe contar em cena, orientando-se em dois registos: “lírico um, cómico outro, ambos ao serviço de um pensamento intrínseca e estruturalmente humanista”. Alcmena apartada da presença do seu esposo amado, fala com o coração, chorando da ausência do marido. Um sentimento de “saudades” que é confessado num “magoado lirismo”, enquanto Júpiter humanizado e apaixonado “arde em tamanho fogo” enleado nas redes da paixão que o devora.
Onde Camões soa estranhamente actual, é na cena “pirandelliana”, como lhe chamou Jorge de Sena, de pluralização do eu, em que Mercúrio “despe” Sósia da sua personalidade e identidade para as vestir ele próprio. Mas, ainda mais terrível, como assinala Luís F. Rebello, é assistirmos ao esvaziamento e anulação de Sósia, a ser despojado da sua identidade, cuja situação derradeira é a de “não ser coisa nenhuma”, num terreno já de absurda condição humana, presenciando “O espectáculo terrível do vazio que oferece o arrancar de uma máscara a um rosto inexistente, ou o nada em que se afundam as personagens”, como os vagabundos alienados de Beckett, agarrados “a restos de palavras como tábuas de salvação”. Revisitar o teatro de Camões, não deixa de ser impressionante, teatralmente falando.
Silvina Pereira